terça-feira, 30 de outubro de 2007

Mares Ardentes


Com alguns traços de decadência eu vivia em meu próprio universo... Vivia tão fechado, mas tão em paz... Cada coisa era calculada em seu espaço e em seu tempo de forma livre, porém nunca em dissonância. Não existiam conceitos. Havia um caos estruturado, que apesar de caos, possuía uma esfera harmoniosa ao seu redor; uma harmonia natural que transcorria cada astro de meu céu. Eu passava meus dias a caminhar pelos meus mundos, admirando minhas próprias criações e a canção de minhas totais - e até então intocáveis - autosuficiência, onipresença, onipotência e onisciência.

Meus dias eram preenchidos de sóis das mais diversas cores, sendo o meu favorito um gigantesco sol esverdeado, criado em um dia de peculiar tranqüilidade. Naquela vida eu tinha a mim e isto por si só preenchia todo o espaço de minha criação. Assim, meu coração sempre bastara, fazendo com que eu e minha consciência nos completássemos e ecoássemos universo a dentro, refletindo minhas próprias leis nos sóis, nas estrelas e nos mundos que eu mesmo criava. Eu criava incessantemente com a paixão de um artista em paz profunda. Se tratava de um confinamento prazeroso, aquela minha vida. Solitário e absoluto, sem nunca ter havido sequer um dedo mortal que ousasse tocar os portões de entrada de meu silente universo, eu reinava e existia em cada espaço.

Contudo, em algum momento perdido, tal paz se dissipara: a trança de minha criação havia sido quebrada. Em alguma era da qual eu mal me lembro, uma certa mancha surgiu no maior sol de meu universo. Então os mares de meus mundos começaram a arder delicadamente, e algumas constelações se perderam... Era o prenúncio de algo maior se aproximando. Algo que desejava tomar as rédias de minha vida para sempre.

Gradualmente, os ventos não mais obedeciam aos meus comandos, e minhas estrelas vestiam cores não escolhidas por mim. A harmonia natural existente em meu universo não existia mais. Outro Deus governava o centro do meu espaço, sendo suas mãos e suas obras os maiores mistérios que já conheci e amei. Sim, eu o amei naturalmente, me rendendo aos seus poderes como um escravo que se vende por vontade própria, dançando e me envolvendo nos sons invisíveis de seus feitiços de Deus intruso. Como meus mares ardiam! Seria possível não me render a alguém tão poderoso a ponto de descubrir a entrada para meu universo? Quebrara meus portões cristalinos e entrara sem dó pelos meus encantados jardins.

Em meio aos meus mares ardentes eu o amei mais que tudo, pois meu Deus não era mais em mim, e sim nele. E tudo ardeu mais com a sua chegada. As direções se confundiram, as terras estremeceram e eu, cego, apenas o amei. Jamais pensara que havia poder maior que o meu, e tamanho poder somente me desorientou, me aprisionando em profundos olhos negros. Eu agora só existia em suas coisas. Principalmente em seus olhos, como um reflexo, como a prova de que meus esforços, ao fim, eram pó diante do poder de seus cabelos negros e de suas asas avermelhadas. Eu não sei até que ponto o amei ou até que ponto amei o seu furioso poder, pois eu constantemente morria dez mil vezes ao ouvir sua poderosa voz, naturalmente capaz de fazer um universo inteiro sucumbir e ressurgir de forma melódica e grosseira a partir de sua falsa luz de vidro, do mistérios de suas mãos e de suas estrelas geladas.

Eu cedi meu templo, minha alma e meu reino inteiro a este Deus. Cedi as chaves de meu paraíso a ele, para depois, caído, perceber que o mesmo trouxera as trevas e a prisão da carne ao meu universo. Os sóis, antes tão coloridos, agora ganhavam a mesma cor avermelhada e queimavam tudo que ousasse se aproximar, os mares começavam a agitar-se de forma brutal, agredindo as terras antes tão amigas - e agora tão secas - e as estrelas, em triste tentativa de fuga, vez ou outra caíam e chocavam-se com os mundos mais encantados e pacíficos. Eu presenciei a terrível guerra entre os astros de meu próprio universo! Não houve amor no seu reinado, intruso Deus! E eu, caído, não passo de mais um cavalo abatido em seu grotesco e infinito campo de batalha, arena vazia na qual apenas tu poderias vencer, coroado pelas flores de sua vaidade sem fim.

Hoje eu me encontro vagando sem um universo próprio, preso nos olhos daquele Deus intruso e tirano que, sabendo de minha nova prisão, evita olhar nos olhos de outros deuses. Tal criatura bem sabe, em seu negro interior, que seus olhos - possuindo minha essência - suplicariam: Não me deixem conquistar outras terras! Não me deixem destruir outros paraísos!



Ele conquista os mares alheios.
Ele os faz arder.



terça-feira, 23 de outubro de 2007

Sobre a Chuva e o Universo


Tudo o que eu faço é observar. Não sei ao certo se isso se trata de uma bandeira de desistência, ou apenas de uma ocasional descida. Entretanto, tudo o que eu faço é observar. Não sobrou amor em canto algum do mundo para regar as minhas flores; e a existência agora tem duas faces muito bem definidas. Faces as quais vez ou outra naturalmente se chocam em um estrondo esurdecedor, iluminando e queimando tudo com força de supernova crescente. São duas estrelas absurdamente gigantescas que colidem na plena imensidão vazia do Universo. Em meio a essa guerra descomunal, eu sou uma gota pequenina de qualquer coisa indiferente. É o caos na minha vida. É a desordem que transborda do topo do vulcão supostamente adormecido que é a minha serena aparência. Disfarçada bagunça.

Só há Chuva por aqui. Há horas. Não movimento um músculo. Nem sequer pisco. Eu só penso. E como é engraçado, isso... Dizer que quero fugir soaria tão pateticamente batido... Clichê tão pobre, tão podre e tão não-convincente que até prefiro ignorar. Ah, mas definitivamente não estou aqui. Eu fugi faz tempo, meu amigo. Eu apenas esqueci de ir. Eu esqueci de me retirar. Esqueci de oficializar a minha fuga. Provavelmente por falta de coragem... E confesso que agora, neste exato momento, eu não estou nem aí. Eu não me importo com absolutamente mais nada. E confio isso somente a mim mesmo e, obviamente, a você.

Estou aqui há horas ignorando minha vida por conta de querer parar. Por conta de ter de fato parado – só um pouquinho – sem o consentimento do Universo. Sim, pois aparentemente tudo continua mesmo que nós, não mais agüentando, paremos. Eu me sinto é atropelado, isso sim. Atropelado pelo Universo inteiro. O problema é que, como de costume, eu não me acostumo.

Fato é que no fundo eu gosto mesmo é de ouvir a chuva. Ainda mais em um ano como este, em um mês como este, em uma semana como esta e em um dia como este. Eu gosto é de ouvir a Chuva em uma vida como esta. Ela, a Chuva, vem sem pedir licença. Você deve saber, eu acho. E por mais que eu queira fugir, no fundo eu quero apenas ouví-la. Eu sei, não é algo simples. Mas eu a ouço, pois ela me diz que ao fim do dia sou apenas eu. Nada a mais, nada a menos. Somente eu. Contudo, veja bem: eu não quero ser apenas eu. Não aqui. A idéia de "só", aqui, me dá arrepios, entende? Complicado? Eu disse que não era simples. No entanto, apesar dos pesares, ela, a Chuva, não vem para mentir. Então eu a ouço e espero bem aqui até ela ir embora... Parado. E tudo o que eu faço é observar.

Eu deixo a Chuva, o Mundo e Universo seguirem. Como se por algum milagre, caso eu precisasse, eles fossem me ouvir.