quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Sem Título


Eu não te amo, porque isso, nas atuais circunstâncias, seria a maior loucura da minha vida. E olha que loucuras não faltam por aqui...

Apesar de não te amar, eu sei que havia - e agora eu sei que ainda há - algo em mim que há muito tempo eu considerava morto. Algo como um baú trancado, escondido e empoeirado em algum canto daquilo que eu conheço como alma. Esse algo do qual eu já havia me esquecido há tanto tempo, veja bem, estava imerso no silêncio de uma cor que nunca mais seria vista, se dependesse de minha vontade. Então, quase que instantaneamente, aquela rocha que era o silêncio se dissipou como pedacinhos da dente-de-leão. Você surgiu. Ou melhor, eu surgi para você sem nunca ter escolhido isso. Sem nunca ter escolhido você. E foi justamente você quem imediatamente deu sentido a uma gama de canções que nunca sairam da minha mente.

Não me entenda mal, pois não desejo ser piegas (e esse assunto não ajuda muito nesse sentido). Não estou aqui discorrendo a respeito de um sentimento que me coloca em uma espécie de espaço de luz mágica que contagia a tudo e a todos, fazendo do mundo um lugar melhor. Muito menos estou me referindo a uma rajada brutal de alegria nua e crua, daquelas que nos fazem sentir o peito pesar e o mundo diminuir aos nossos pés, nos tornando príncipes anônimos, reinando silenciosamente por imensuráveis segundos. Não me refiro a esse estado de graça tão sólido. Me refiro a algo muito mais simples. E preste atenção, querido. Algo muito, mas muito mais poderoso do que tudo isso. Agora me diga, rapaz. Seria amor?

Eu sei que eu não te amo, mas eu também sei - e muito bem, acredite - que você tem aí dentro de ti algo que de alguma forma chegou a mim e iluminou lugares que eu nem sequer sabia que existiam. Ridículo, eu sei. Três meses sem escrever uma linha de meus supostamente profundos textos e agora apareço com um discurso de mocinha de dezesete anos. Bem, eu não vou dar ouvidos a mim mesmo, até porque acredito que você não vai ler essas palavras... Acredito mesmo, porque acreditar é tão bom, meu Deus! Acreditar signfica ter certeza de algo sem banir por completo as possibilidades que queremos ou não que venham a se concretizar.

Eu não te amo.

Eu não te amo ainda, talvez... Mas não importa. Só não quero te ver indo embora, me deixando sozinho com esse algo que (re)descobri. Você inaugurou alas em um palácio que sempre é abandonado por todos os seus inúmeros visitantes. Não passe por aqui para me deixar sem as chaves das portas que você abriu. Fique e me mostre que no final das contas, apesar de eu não te amar...

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Onírico III


Roxo e preto eram as cores que intercalavam-se em um padrão rítmico hipnotizante. Despertei parcialmente, dando-me conta da estranha sensação de estar em um carro em alta velocidade. Eu estava deitado, seguindo velozmente por dentro do que me parecia ser um túnel de pedra. Cuidadosamente perfurando alguma rocha de tamanhos imensuráveis, tal túnel possuía apenas uma parede regular, a qual do meu ponto de vista seria a parede esquerda. A parede direita, por sua vez, me permitia ver o céu lá fora, pois vãos brutalmente esculpidos passavam por mim à medida que eu seguia para meu desconhecido destino. Olhava o céu paralisado em minha viagem daquela noite.

Após um considerável aumento na velocidade em que eu me encontrava, fui lançado para fora do túnel de pedra, agora levemente flutuando e pousando no meio daquela paisagem desconhecida. Eu me encontrava em uma grande planície desértica e árida, que me passava uma solidão incontestável. A terra lisa e plana entrava em um contraste estranho com aquele céu roxo que, àquela altura não mais me instigava a investigar o lugar.

Senti um certo desespero, embora não mais estivesse só. Havia muitas pessoas ali. Todas cobertas em vestes estranhas, panos que remetiam às nossas culturas indianas e árabes. Não me lembro com detalhes, mas sei que esta é a única associação que consigo fazer entre aquele povo e alguma coisa que eu de fato conheça. Para ser mais exato, não diria que ali se encontrava um povo apenas. Talvez fossem pessoas de diferentes povos, não sei. Tenho a vaga impressão de que ouvia diferentes línguas, em diferentes timbres e cores...

Aquela planície possuía um quê de ponto de convergência de viajantes. Em um primeiro momento, minha impressão era a de que se tratava de um local de trocas, compras etc. Entretanto, a situação era assustadora. Dei-me conta de que o tumulto que lá ocorria se constituía do pranto de alguns e dos gritos de outros, percebi a ira dolorosa daqueles que lá estavam. Pareciam pobres e extremamente injustiçados. Tal lugar parecia o que aqui na terra conhecemos por campo de concentração. Pude reparar que algumas pessoas procuravam por outras, enquanto algumas limitavam-se a gritar. Eu estava entre elas, mas não sabia o porquê. Estávamos todos apertados, contidos em um determinado perímetro por força daqueles que pareciam ser soldados.

Estes por sua vez eram seres um tanto maiores, que se encontravam em cima de animais grandes como os cavalos. Confesso que não me recordo se de fato utilizavam tais animais ou se – e não tenho medo de dizer que isso me parece o mais provável – se travam dos animais em si, como se fossem centauros. Essas criaturas possuíam chicotes com os quais repreendiam aqueles que tentavam se manifestar ou agredi-los de perto com palavras. Lembro de uma mulher sendo chicoteada a nossa frente, causando grande tumulto entre nós, que estávamos por perto. Lembro-me de não estar realmente amedrontado neste momento, pois após algum tempo eu queria apenas me situar naquele cenário caótico. Só queria entender o que ocorria.

Mil coisas se passaram pela minha mente ao ver tudo aquilo... Atordoado, consegui manter a calma para só então perceber que havia armas. Chocado, notei que aquelas pessoas estavam a ponto de travar uma verdadeira batalha. Algumas estavam portando armas exóticas sobre as quais não sei falar absolutamente nada. De fato era isso. Uma revolução, uma grande batalha, uma revolta que não poderia ser contida. Eu não deveria estar ali, sob aquele céu. Não tinha e nem tenho idéia de como fui parar em tal local. Corri rumo á planície, tomando impulso para me lançar de volta ao túnel de pedra. Tal escolha me fez despertar em meu quarto, assustado como de costume.

Não conheço aquela terra, não conheço aquelas pessoas e muito menos aqueles seres tão brutos. Havia uma imposição de poder da parte deles, como se fossem colonizadores, talvez. Me intriga ter ganhado a consciência em um local que se encontra sem um ponto definido no tempo e no espaço; e me intriga mais ainda ter percebido claramente os sentimentos daquelas pessoas, mesmo sem entender sequer uma palavra das estranhas línguas daquela terra de céu púrpura.


sábado, 2 de agosto de 2008

Onírico II

"Hear my silent prayers
Heed my quiet call
When the dark and blue surround you
Step into my sigh
Look inside the light
You will know that I have found you"
- Dreamcatcher, Secret Garden -

A idéia de realizar o menor movimento para levantar-me soava como um esforço hercúleo. Pedaços de silêncio e sono, mesclados, penduravam-se delicadamente nos detalhes de meu quarto.

Imerso na penumbra tentei chamar sem sucesso por meu irmão, que dormia na cama ao lado. A sensação de acolhimento que a sonolência provia agora parecia desfazer-se. Não conseguia pronunciar absolutamente nada e, muito menos, sentia minha respiração fluir. Tal quadro me pareceu muito grave, me preocupando ao extremo. O sono já havia se dissipado e agora eu tentava – ainda sem sucesso algum – levantar-me para buscar ajuda. Foi então que notei as formas peculiares que estavam diante de mim.

Pude reparar nas silhuetas daquilo que pareciam ser duas meninas por volta de seus treze ou quatorze anos. Não conseguia distinguir, em meio à penumbra, as cores de seus cabelos longos ou de seus vestidos. Eram sombras sentadas aos pés de minha cama, aterrorizando-me a cada vez em que eu tentava chamá-las a atenção em vão. Pareciam procurar algo, ou simplesmente conversavam. Trocavam confissões, talvez... Eu tentava gritar. Eu queria sentir-me livre, tentando aplicar uma força verdadeiramente descomunal para mover um dedo que fosse.

Parei em choque quando, para meu desespero, notei aquilo que parecia estar me olhando de cima. Esta terceira figura – também ela uma sombra - se tratava de uma figura masculina, que por sua vez se encontrava por trás do espelho de minha cama. Minha voz soava distante, como se eu estivesse dentro d’água. Meus gritos perdiam-se em meio a um estranho silêncio, sendo o único som nítido uma ofegante respiração que parecia alternar-se entre meus ouvidos, indo freneticamente da direita para a esquerda, da esquerda para a direita. Sentia como se algo me segurasse, prendendo-me àquela cama e àquele quarto, forçando-me a ver as três criaturas que me acompanhavam.

Ao não mais suportar aquilo, me rendi; e desistindo de gritar ou de chamar por qualquer ajuda, finamente me movi, correndo em lágrimas para o quarto de meus pais. Acordei-os afirmando com angústia que algo se encontrava em meu quarto. Contudo, eu sabia secretamente, bem no fundo, que além de meu irmão nada havia lá. Disfarcei as verdadeiras raízes de minha angústia, que não passava de uma triste frustração.

Eu havia pela primeira vez despertado em um mundo que não era o meu e mal o explorara por conta de minhas tolas inseguranças. Assim, o medo e a aflição perdiam suas cores à medida em que eu me embalava na possibilidade de ter finalmente encontrado as fadas com as quais sempre sonhei. Seres que talvez me guardassem, trocando segredos aos pés de minha cama.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Onírico I


Eu estava em um beco escuro. Exatamente, simples assim. Em um beco escuro. Acabara de correr de alguns meninos que haviam tentado nos assaltar por três vezes seguidas, numa repetição de uma mesma cena que muito me inquietara. Eu havia corrido dali sem saber para onde ir, me separando de meu amigo, do qual já não sabia mais nada àquela altura. Naquela fuga sem pé nem cabeça acabei me deparando com o escuro beco, no qual me escondi.

Parado ali eu tentava compreender o que estava se passando. Tudo estava muito estranho e aquele ambiente não me inspirava muita confiança, apesar de também não instigar em mim o medo que sempre sinto diante do desconhecido.

Reparei que ao final do beco havia uma porta por onde escapava uma luz que me parecia muito forte. Aproximava-me sem pensar duas vezes quando a porta foi aberta, me surpreendendo. Como se tivesse ouvido meus decididos passos, um simpático de senhor de cabelos brancos e olhos azuis abrira a tal porta:

- Henrique! Bom te ver! Entre, entre!

Ao passar pela porta deparei-me com o que parecia ser uma espécie de cozinha. Não que de fato o fosse, pois não vi alimentos ou panelas ou qualquer coisa do gênero. A associação que faço entre o estranho lugar e o universo “cozinha” tem origem no simples fato de o lugar ser iluminado com uma luz branca muito forte e possuir uma série de mesas e balcões de metal.

Entrei tímido, pois reparei que minha presença chamava atenção. Todos os que lá estavam era senhores e senhoras de idade avançada. Não sei se de fato viviam naquele lugar, que a essa altura já me remetia a um ambiente hospitalar – novamente, associação por conta da iluminação, das cores etc. – O fato é que além de todos aparentarem uma idade avançada, todos vestiam roupas brancas. Passavam por mim sorrisos simpaticíssimos, acolhedores. Sorriam em cada gesto, aqueles que lá estavam. Todos os olhos azuis fitavam-me num misto de alegria e curiosidade. Todos pareciam me conhecer, fazendo com que eu me sentisse muito bem recebido, apesar de extremamente confuso. Desta forma fui conduzido a uma ampla varanda, em outro andar, acredito.

Ao adentrar novo ambiente percebi diversas mesas brancas, quase iluminadas. Possuíam detalhes dourados muito bem esculpidos, que culminavam numa ornamentação estupenda, a meu ver. O ambiente agradável daquela varanda, aliado à cor branca das mesas, gerava um contraste interessante com o céu que, até hoje, é o mais negro que eu já vi. Não vi lua, nem vi estrelas naquele céu. Tampouco ventava naquela varanda, algo que agora, ao lembrar-me deste episódio, muito me intriga.

Sentado a uma das mesas, me foi dito que deveria aguardar ali, o que fiz sem que estivesse nervoso ou aflito, até perceber três senhoras que se dirigiam à mesa. As três possuíam longos cabelos brancos. Contudo, me recordo com certa riqueza de detalhes apenas de uma delas, que possuía longos cabelos acinzentados e um pouco encaracolados. Lembro-me vagamente de reparar em alguns colares pendurados em seu pescoço. Tal senhora, diante de mim, indagou simpaticamente:

- Então, Henrique. Como se sente desencarnado?

Parado, em choque, percebi o que se passava. Num ato súbito e impensado, não me contive:

- Mas não estou morto! Não estou desencarnado coisa nenhuma!

As três senhoras agora aparentavam uma verdadeira indignação, e reclamavam, nitidamente alteradas. Não sei ao certo se discutiam entre si ou se me repreendiam. Eu sentia como se houvesse as ofendido profundamente, pois minha resposta impensada instalara um verdadeiro rebuliço na harmoniosa varanda.

Enquanto tentava me desculpar, ou acalmá-las de alguma forma, fui surpreendido por um vento muito forte, que golpeou a varanda, me carregando dali sabe Deus para onde.

Despertei em minha cama num pulo. O frio na barriga revirou-me o estômago.

terça-feira, 3 de junho de 2008

O Ipod e o Tempo vs. Eu e o Chão

Calço o tênis como se estivesse indo para a guilhotina. São 17:23 e não sei se subo para ler algumas coisas ou se saio para caminhar. A dúvida vem disfarçada de uma falsa preguiça - que não passa de medo - me dizendo que ao pisar lá fora eu estarei me sujeitando às mesmas peças pregadas em mim todas as vezes em que me aventurei a enfrentar as terras guardadas atrás da segunda curva à direita de minha rua. Decido-me por sair: ipod no bolso (suffle para completar o sadomasoqusimo, você já vai entender.) e portão fechado atrás de mim. Sinto de antemão que só o chão de fato estará comigo nessa jornada. O resto sempre se esvai.

Esta é a melhor hora para se fazer esse tipo de coisa. O sol vai deixando meio planeta parado durante a noite para tocar para frente o tempo do outro lado do mundo. Essa é a hora mágica que escolhi para viajar no tempo. Meio nada a ver, mas que seja. Venta o suficiente para bagunçar todo meu mais novo corte - SO gay. Well, tell me the news - e eu sigo com um frio na barriga que congela até meu rosto. Com as poucas estrelas que surgem tímidas, o vento traz gotas de cheiros aparentemente velhos. Em cada golpe de ar inúmeras gotas; em cada gota inúmeros anos que chegam a mim em forma de faces, sorrisos e canções. Ái, as canções! Uma atrás da outra literalmente me esfaqueando - I'm falling apart, I'm barely breathing... - eu sigo de cabeça erguida.

Caminho e finjo não ver as pedras que estão naquela praia desde antes de eu nascer. Finjo ignorar as pessoas que sempre estiveram sentadas nos mesmos lugares e os barquinhos que sempre enfeitaram a mesma paisagem. São olhares tristes que não me viram crescer, embora eu sempre os tenha visto. Todos sempre estiveram lá desde que me conheço por gente. São figuras que não têm a menor idéia de que cresci guardando seus rostos, seus lugares e seus olhos melancólicos. Passo por tais ícones segurando 10 anos de lembranças em poucas lágrimas que não caem. Tudo me lembra tudo - Life has a funny, funny way... - em um encadeamento de lembranças que mais parece uma avalanche.

É uma espécie de castigo me sentir tão preso a essa ilha. Ainda mais quando quem realmente importa não mais se encontra aqui, seja em corpo ou seja em mente. Existem algumas pessoas que até sabem que são estrelas no seu céu, mas estas, na minha vida, sempre fazem questão de se dissipar. Nenhuma sente essa saudade. Nenhuma evita esse caminho para não ser arrastada para o passado. Pior ainda: nenhuma enfrenta esse caminho para ser arrastada para o passado. Para mim esse caminho não passa de uma ferida que, apesar de sangrar apenas quando eu mexo nela, não está fechada. Ferida só minha. Ferida sozinha.

Obviamente nem tudo em um caminho como este é fácil de encarar. Sei que a antiga casa de um grande - meu melhor - amigo fica ali naquela ladeira, perto da nossa (ex) escola - And I wanna believe you, but I don't... - e trato de passar direto pela esquina que poderia me levar até lá. A coragem não é tanta assim. Me contento em lembrar de cartas de baralho, almoços e tardes de educação física. Tardes que culminavam em preguiçosas horas na casa dele. Até sorrio.

No fundo eu gosto de sentir cada cheiro e olhar em cada um dos olhos que não se lembram de mim com esta mesma dor. Talvez seja uma benção esquecer das coisas... Ou simplesmente contemplá-las sem sentí-las. Comigo é tudo sempre diferente. Quanto mais o tempo passa, mais fortes as lembranças voltam. Então eu me deparo com tias que hoje são senhoras sem rosto e professoras de ciências que em plena sexta série me defendiam de futuros trogloditas – Lê-se crianças heterossexualmente escrotas - e hoje caminham como eu, só que pensando no presente (era ela sim, eu vi!). É uma auto-tortura esse trajeto, eu sei. Talvez se eu o fizesse acompanhado de alguém e sem esse ipod torturador ele não me doesse tanto - the space between é uma escolha simplesmente escrota. Show me some respect, shuffle uó!

Bem, no final das contas, essa dor aqui, de saudade, eu faço questão de manter. Vou abrir essa ferida todas as vezes em que o presente me arrancar lágrimas. Chorar de saudade é sempre melhor do que chorar de tristeza; e cada vez que eu chorar por tudo que vivi com vocês, cada vez que cada curva e cada árvore e cada portão me abater por causa de vocês, lembranças, vocês se tornarão eternas e reais em qualquer lugar, a qualquer momento; e vão ficar marcadas em ventos futuros que vão me envolver e me arrastar tempo afora todas as vezes em que eu sair para caminhar. Quer vocês queiram ou não.

- I got all the time for you, love...


quarta-feira, 30 de abril de 2008

Crescendo


E por não mais ser real,
retirou-se, pálido, rumo ao deserto.
Tinha saberes perdidos e sonhos quebrados,
pois inútil é a força do unicórnio,
que apesar de último de todas as terras,
não mais é procurado.
Lembrança fraca, desbotada.
Hoje é areia e vento.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Uma Vida Inteira (And he knew it was love...)


Ao passar a mão em seus cabelos bagunçados, ele concretiza em seu olhar o oceano inteiro em uma única gota de saudade. O mar em seus olhos acolhe e dissipa dissimuladamente as saudades que virão quando o futuro pressentido chegar. Sente saudade daquele mesmo momento, delicadamente observado de uma bicicleta parada na areia. Nunca soubera por em palavras tal evento, mas era puramente saudade. Uma saudade afinada, em tom menor, daquilo que estava acontecendo. Saudade de tudo aquilo que ele nem havia vivido.

Tinha a certeza da veracidade do estranho sentimento, pois sentia algo maior por vir. Ouvia a grandiosidade do poder de sonhar, sentindo assim, antecipadamente, saudade das águas obedientes à lua crescente, existentes apenas ali, no seu mundo isolado e simples. Já sentia saudade de qualquer noite de segunda-feira de maio. Noites em que estava sozinho em casa, dançando canções que somente a ele pertenciam. Noites com cheiro de cravo e canela, em páginas borradas de deveres mal feitos e sonhos. Sim, sonhos! Com sonhos, quem precisaria de deveres? Sempre falaria isso em alto e bom tom, rindo de sua própria falta de sensibilidade em relação ao que não lhe interessava.

Seus simples gestos diante do hibridismo daquele estranho sentimento era um ritual diário: bicicleta, praia, lua e vento. O enlace que unia passado, presente e futuro se dava em tais momentos, os tornando pequenas dádivas que portavam o título de verdadeiros milagres secretos. Ficaria horas imaginando como cada alegria realizada no futuro viajava no tempo e o atingia lá no passado – para ele, presente – fazendo-o sentir uma felicidade inexplicável.

Tentava decifrar que alegrias futuras transitavam assim, da frente pra trás. E perdia-se nas horas tentando saber se escapavam do futuro para o passado por serem alegrias grandes de mais para caber em um tempo só. Poderiam ser beijos correspondidos, sorrisos doces ou simplesmente abraços apertados. Tão inexplicável, mas até certo ponto, pois ele sabia que tudo isso era amor. Era uma flor nascendo em meio às pedras! Tais alegrias misteriosas eram os olhos de anjos confidentes! Eram o prenúncio de sonhos realizados em um futuro não vivido e muito menos especificado! Então, ao sorrir, inexplicavelmente ele sabia que quem se colocava por trás de tudo, quem permanecia até o fim, era o amor... Tão além do que ele poderia compreender, mas era o amor... E foi assim que ele sorriu e percebeu os sons do tempo.

Quando ele passa a mão nos cabelos bagunçados, de frente para o mar, lá no passado, ele está no futuro vendo um mundo que existe além da porção de terra ocupada por ele. Seus dedos atravessam seus cabelos para tocar o rosto do amigo que ainda não entrara em sua vida; Seus dedos tocam as cordas que ainda nem sequer foram pensadas por suas mãos pálidas de noite de outono e seu coração, perplexo e gelado, chora a partida daquele que antes mesmo de chegar já foi embora. Laços do tempo transformando-se em indecifráveis nós dentro do coração humano. Ele sabia que era o amor vencendo o tempo.

Mas com sonhos, quem precisaria de tempo? Pensa ele no futuro - para ele, presente - ao digitar este texto.

Sabe então que o amor é tudo o que ele pode compreender.

segunda-feira, 17 de março de 2008

O Efeito Loxian


Não fora o primeiro e nem seria o último a ter certeza de que o ar que o tocava era o mesmo que envolvia cada estrela que cabia no céu. Não se tratava de um estudioso do espaço, contudo, em sua humildade, sempre fechado e sereno, deitava-se todas as noites para contemplar cada singelo ponto pendurado no firmamento. Gostava de pensar que a noite nada mais era do que a vida por baixo de um vasto oceano negro. Compenetrado, ele observava cada detalhe como se fosse um sábio conhecedor, quase um amigo íntimo de longa data de cada estrela. Se era sábio ou não, não sei ao certo. Não cabe a mim decidir algo desta natureza. Mas com certeza ele foi alguém que apenas seguia seu coração. E não se julga um coração que segue seus instintos.

Como dois grandes quadros seus olhos guardavam todos os pequeninos reflexos que conseguia captar. Permanecia atento até sentir-se estranhamente só; e enviava pensamentos nas mais variadas direções. Eram apelos, preces, perguntas e confissões. Lançava-os como pedrinhas ao mar, na esperança de obter alguma resposta, na angustiante espera de perceber algum brilho especial que o fizesse ter certeza de que havia alguém ali. Apenas alguém.

Sentir-se amigo íntimo de todas as estrelas é sentir-se só, pois elas são infinitas. Contudo, certa noite tal estranho sentimento teve o seu fim, quando tendo seus olhos presos em um delicado ponto azul, sentiu-se deixar de pertencer a todas elas. Fora preso pelo delicado ponto distante, que de forma alguma se tratava do ornamento mais elaborado daquele céu. E mesmo não se tratando do brilho mais extravagante a ser visto, foi ali que seu coração encontrou conforto; e então ele pôde contemplar as cores vivas do sentimento de não ser só. Assim, em infindáveis segundos, alguma ponte foi feita entre ele e a estrela. Foi então que desenhou em sua noite um novo alfabeto, podendo sigilosamente trocar as mais delicadas confidências com sua nova amiga.

"Eram íntimos, eram dois e eram um, pois na eterna noite que é o espaço tudo é possível", me disseram certa vez, não me deixando dúvidas quanto a autenticidade dos sentimentos que nasceram daqueles olhos presos em uma estrela. Há quem diga que no momento em que ambos se cruzaram todas as outras estrelas sentiram-se magoadas e invejosas em relação àquela amizade.

Foi então que um outro ponto - certamente por ciúmes - rasgou o céu de um lado a outro, sem dó nem piedade da relação que acabara de nascer. Tal surpresa tirou seus olhos do distante ponto azul, que perdera-se em meio a todos os outros astros, sem ao menos dizer adeus. Derramou tímidas lágrimas antes de perder de vista o seu singelo ponto azul. Perdera-o para sempre, não havia dúvida. Contudo, sorriu ao saber, de alguma forma dentro de si, que havia vida fora de suas terras. Vida que pulsava e harmoniosamente se fazia perceber. Saberia definir aquilo? Não. Saberia explicar o que se passara? Jamais.

Existem coisas as quais simplesmente não se explicam. Sabemos sentí-las, mas não estamos aptos a entendê-las ou definí-las. A lógica da alma é algo obscuro e envolto em névoas; e é isso que todos nós precisamos entender. Essa harmonia mútua que ocorre entre duas almas não existe para ser decifrada. Em outras palavras, quero dizer que tudo que precisamos saber a seu respeito nos é inato, simplesmente agindo através de nossos corações. É essa a razão pela qual, embora soubesse que não estava só naquela noite, ele nunca soube que do outro lado do céu, encantada por um distante ponto vermelho, Lya admirava o céu de Moscou com nostalgia concreta. Sabendo - mesmo sem saber, meus amigos - que exatamente no ponto vermelho alguém a sentia no ar.

São caminhos que se cruzam no plano da Mãe Vida.
Olhares que se encontram na multidão infinita das estrelas.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Violino


Há muito fui iniciado em uma arte
que não requer instrumentos, técnicas
ou até mesmo inspiração.

É a arte de amar aquilo que está ali,
calado no seio do futuro.
Sonho invisível, que tímido,
não chegou às minhas mãos.

Aprendi a esperar e adorar aquilo que desejo;
E obrigado a ferver no amor pelo invisível,
Fui iniciado contra minha vontade.

Aprendendo que se esperar, com paciência,
É uma virtude;

Amar o incriado é uma arte.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

ελεγεία (Elegia)


“But afterwards there occurred violent earthquakes and floods; and in a single day and night of misfortune all your warlike men in a body sank into the earth, and the island of Atlantis in like manner disappeared in the depths of the sea.”

- “Timaeus”, Plato -




Um raio rubro foi aquele primeiro a cortar o céu negro daquela noite. Veio com a rapidez de um pensamento frívolo, daqueles que passam desapercebidos pelas mentes tolas dos homens. Tal raio cortara as entranhas do céu declarando que o fim era ali, dando início à última tempestade que vi em minha antiga terra. A glória que reinava nos fartos tempos passados sangrava caída no chão, que sob os nossos pés desabava em grãos úmidos e sem vida, sem paz ou qualquer esboço de esperança. Juntamente com os raios, as gigantescas ondas abatiam-se sem piedade, lançando pesados golpes aos homens. Todos rastejavam como vermes, inconformados e banhados a lágrimas e ecos das antigas profecias. Com a queda das ondas veio a queda da grande torre; e com a queda da torre, a queda da realeza daqueles homens, estes sendo os primeiros causadores de todo o caos, aqueles que iniciaram a maior queda que a terra já presenciou dentro dos confins dos dois grandes e inseparáveis sábios que são o tempo e o espaço.

Despertei em meu leito com o grito de uma criança vindo dos jardins. Apesar de ter sentido há dias os pequenos tremores na terra, naquele dia havia algo a mais. Peregrinos vindos da costa oeste se encontravam desolados, sem suas casas e seus bens. Alegavam que ondas gigantescas haviam destruído tudo fora dos limites da costa. Em meio ao caos que tomava conta de meu vilarejo, o silêncio chegou com a queda do poderoso raio, que lançou sobre a terra um crescente tremor, tirando todos nós de nossos lares. Pouco a pouco o céu fechava-se em um tom negro de rebeldia e punição. Não restava dúvida de que as profecias se concretizavam. Senti o pânico tocar o coração de todos os meus companheiros. Permaneci imóvel.

Observando descrente e confuso o que se passava, tentei me encontrar em meio a triste guerra travada entre os Deuses e os homens. Todos corriam em diferentes direções. Ouvia gritos incandescentes, urros desesperadores. Me virei lentamente, em choque, ao me dar conta de que ali, entre tantos gritos sem sentido, ouvira meu nome. Da escuridão e da agonia, meu nome pronunciado veio como uma gota de luz em um escuro abismo. Não morri e nem me entregaria. Não eu. Jovem que era, tinha em mim a ambição típica daquele povo que em poucas horas se transformou na mais grandiosa lenda, passada de voz em voz, de sábio para sábio.

Virando subitamente vi minha casa afundar-se em míseros instantes terra a dentro. Minha vida inteira, minha família e lembranças agora estavam nas profundezas. A gota de luz se perdera no abismo. Corri. Não ousei olhar para trás. Corri rumo ao Leste guiado por instinto, sentindo uma forte presença vermelha nos céus. Não ouvi o medo, meus caros. Nem sequer pensei. Mas ouvi meu coração orgulhoso clamar por vida e senti minha alma queimar no desejo intenso de perpetuar a vida de minha poderosa nação. Não deixaria o fim daquela terra me levar.

Ao parar debaixo da copa de uma antiga árvore, o dia já havia se transformado em noite, descendo seu escuro manto sobre aqueles que outrora reinavam soberanos sobre os homens. Raios cada vez mais estrondosos ruíam as torres de minha amada terra, até então poderosa rainha dos mares... Corri por entre as árvores a fim de alcançar uma das últimas embarcações que saíam da costa leste rumo às abundantes terras dos colonos. Rumores diziam que tais embarcações se encontravam preparadas pelos antigos há muitas semanas.

Foi então que, passando uma última vez pelos bosques, em direção às praias, avistei de longe o imponente templo do Sol. Estava tão silente, tão calmo... Parecia inabalável a todo o caos que se instalara desde a manhã daquele dia. Era meu dever como filho daquela terra me despedir. Ali eu mal sentia os tremores e os ruídos assustadores que vinham das profundezas da terra. Suas paredes contavam toda a história da humanidade até então viva, através de cores, rostos e nomes dos quais jamais esquecerei.

Caminhando pela ala central lembrei do poder construído pelos homens através de milênios de existências naquelas terras azuis, filhas da água; e de seu interior pude contemplar pela última vez a visão da lua vista diretamente da janela maior. Estava vermelha, claramente visivel atrás de algumas nuvens; e como uma verdadeira soberana ela fazia dos raios seus meros aprendizes, pequenos sinos anunciando a fim daquele negro capítulo. Pareciam vir dela, caindo e afundando – talvez ornamentando, até - as terras em um cataclismo capaz de abalar mundos inteiros. Lembrei de minha esposa e pensei em minhas filhas, por pouco não desabando com o templo. Queria sucumbir e tomar minha parte na fusão que se dava entre a imensidão das terras com a imensidão das águas. Fui interrompido pelas paredes que começavam seu amargo lamento de despedida. Ajoelhado diante do registro indelével de minha história, beijei o chão e parti.

Corri sem me virar, sentindo as terras que deixava para trás de cederem à água. Corri, dando cada passo em nome de minha vida, de minha família e de minha terra, alcançando por fim as praias que continham em suas antigas areias as memórias infinitas daquele povo tão orgulhoso e soberano. A fúria da estrondosa batalha entre as terras e as águas tornava quase impossível ter esperanças. Deseperadamente corri sem rumo algum. Nunca em minha vida ouvira sons tão funestos e pesados. Doíam em meu interior, pois se não fossem os sons das dolorosas lágrimas de minha terra, eram os gritos dos Deuses. Verdadeiros urros titânicos.

Ao atingir as areias, para minha surpresa avistei três embarcações, prontas para arriscar uma fuga. Me salvei levando comigo apenas as vestes que estavam em meu corpo, sabendo que as chances de naufragarmos naquelas furiosas águas eram enormes. Assim, tudo que me restou dos últimos instantes em que estive em contato com minha terra desde que acordara era a esperança de ter vida e tempo para crer em tudo que estava se perdendo.

Afastamo-nos o máximo que pudemos, gritando como homens em guerra, na tentativa de sufocar os gritos e ruídos ensurdecedores que agora tomavam conta de tudo. Havia fogo, névoa e muito ódio em nossos corações. Diante da natureza - e dos Deuses conseqüentemente – nós somos impotentes. Pensei no poder de nossos Deuses, incomparavelmente maior que o nosso. Lembrei de como a minha raça os desafiara, tentando tomar seu lugar na terra. O som dos tremores repentinamente colidiram em um só explosão, nos lançando a incontáveis metros de distância. Ao retornar a mim mesmo, percebi os estrondosos ruídos se juntarem em um único som, por fim cedendo espaço aos sons leves da água, que já recolhia suas gigantescas ondas.

Pouco a pouco o fogo sumira e os céus calaram-se. Senti que toda a terra podia ouvir o triste fim de meu povo. Fim no qual tudo se perdeu num misto de terras e água, banhados por raios ensurdecedores e fogo. Em apenas um dia e uma noite todo o império e suas fartas terras sucumbiram nas frias águas do oceano. Restavam apenas nós, a lua vermelha e as águas.

A Atlântida não mais existia.


terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Samhaim


"As you turned to go I heard you call my name,
You were like a bird in a cage spreading its wings to fly
''The old ways are lost,' you sang as you flew
And I wondered why."

- The Old Ways, Loreenna McKennitt -



Olhos negros e fortes eram aqueles que com força incisiva se fixavam sobre o mar. Eram olhos que possuiam os tons mais belos da natureza e abarcavam em si todo o vasto universo, com todos os seus segredos e anjos. Com todos os seus Deuses e todos os seus demônios. O vento frio brincava em seus longos cabelos enquanto ela acariciava a mais terrível fera daquela embarcação em seu colo. E brincava com os Deuses ouvindo os prenúncios de sonhos que soavam da distante terra para qual seguia. Dono de tantos mistérios femininos, seu coração possuia as chaves das verdades. Ele sim conseguia ouvir o que aquela elegante fera tinha a dizer, conduzindo a jornada em ritmo de uma tranqüila fuga. Assim, em prece e com seus olhos perdidos na imensidão azul, ela acariciava calada, em uníssono com as águas que cercavam aquela rústica embarcação, o silêncio de quem foge dos homens cruéis. Fugia para um último abraço de sua amada mãe terra.

O motivo de sua fuga pelos mares era apenas um: o fogo. Nele perecia todo aquele que tivesse acesso às verdades da Grande Mãe. E em seu errôneo uso ele era obrigado a lançar chamas em milhares de mulheres, homens e crianças, que no fundo nada mais eram do que simples filhos da natureza, que jamais deixariam de lado seus círculos, suas danças e seus Deuses. Apenas o fogo, erroneamente comandado por homens-bestas, era capaz de impedí-los. E apenas o fogo, apesar de cruel nesta ocasião, os libertava de um mundo onde apenas um Deus poderia reinar, através do sangue derramado. Sangue pagão de quem carregava aquela que é tríplice no coração.

Perdido no passado era o tempo em que as forças opostas equilibravam a vida. Agora, em trevas se encontravam aqueles irmãos e irmãs, filhos da Grande Mãe, carregando o sangue que corre nas veias das árvores e dos rios. Almas leves que brotaram das flores e das pedras, outrora preenchendo as terras com suas cores e seus perfumes de Maio... Tantas perderam-se no fogo, enquanto raras tentavam se encontrar na água. Quase perdidas.

Tais almas navegavam guiadas pelo silêncio para a esperança de uma nova terra, rumo às clareiras e bosques que as receberiam em seus secretos altares como um palácio recebe sua realeza. Fugiam para uma liberdade temporária que acabaria em chamas mais cedo ou mais tarde. Seguiam para uma última celebração; e navegando em resquícios de doces sonhos de uma outra era, ela, como uma sacerdotisa, acariciava o silêncio como uma mãe acaricia seu filho doente.

Não crer? – Jamais. Não ousaria perder a fé naquela que sempre a guiara, pois sabia que em sua glória jamais pereceria. Sabia em sua alma que seu corpo era ilusão passageira, porém sua fé e sua arte poderiam sobreviver a qualquer ódio ou força de todo e qualquer homem. Cantarolava com orgulho e tristeza o hino à nova terra, sabendo que um dia, cansada da tirania dos homens, dançaria com vida na terra dos mortos; e sua arte renasceria em um tempo distante daquele, trazendo ela, seus irmãos e suas irmãs para um novo nascer do sol.