domingo, 28 de fevereiro de 2010

Cena


Após uma longa noite de monólogos dedicados às frias estrelas, um príncipe de vestes negras desperta em uma praia triste e silente, deitado em fina areia.

Sem traços de lembranças ou sussurros de sua imagem, não sabe quem é, nem de onde vem.
Não possui um nome e muito menos bagagem. Que história lhe deu origem?

Apenas uma folha cravada na areia com um punhal. Letras talhadas ao vento...

Areia branca e céu cinza, entrelaçados,
como onda raivosa e neve em mi menor.

Ele é uma gota de sangue naquela imensidão gelada.

Dedica sua nudez à fria manhã,
se tornando um ponto final
sem botas, capa, chapéu e paletó.

Canta seu triste hino enlouquecido, rasga as palavras de estranha língua
e entra nas águas em busca das lembranças que jamais voltarão.

Some aos poucos, deixando nada para trás.

Que cena estranha, eu penso.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Leonardo, o óbvio

Como se já não bastasse a aliança dourada no dedo e suas roupas sociais de escritório, ele também tinha que segurar um dos principais símbolos da vida adulta: um jornal.

Aposto minha vida na possibilidade de sua leitura ser o caderno de esportes. Bonito? Sim. Continua bonito. Talvez até mais que antes, já que agora - suponho - não há mais o ar infantil e sem educação que era tão típico dos garotos da minha geração, há 12 anos.

Ele, como todos os outros, seguiu os cansados passos de seus pais, que por sua vez seguiram os passos dos seus e assim por diante. Engraçado. Há alguns anos eu sentiria muita inveja dele, tanto por ele estar com a vida "encaminhada" quanto pelo fato de ele ser "normal". Não me leve a mal, não estou criticando deliberadamente a rotina ordinária e sem graça do rapaz. Até mesmo porque confesso que 12 anos atrás eu acreditava que ele se tornaria um marginalzinho, como os piores das turmas se tornaram, embora estivessem em uma instituição respeitável. E vou além e confesso que, ainda hoje, às vezes, quando estou de saco cheio de tudo o que me cerca, eu amo todas essas pessoas e suas vidas comuns. Desejo com força as suas rotinas e toda a glória da previsibilidade das mesmas. Há um certo conforto na normalidade.

Mais do que ninguém, eu sei que não devemos julgar pelas aparências. Acredite, de clichês, eu entendo muito bem. Acontece que eu conheço este rapaz porque venho de um lugar onde todos se conhecem e são iguais e ele, obviamente, não se salvou.

Na infância era um pequeno troglodita, mais um porquinho abusado que batia e brigava de graça, mastigando incessantemente um canudinho e usando uma blusa do vasco extremamente fedida e desagradável por baixo do uniforme. Mas tudo bem, se você acha que prever a vida dele hoje, ao vê-lo como um rapaz heterossexual convicto, católico não praticante, rato de micaretas e torcedor acíduo do vasco que estuda administração e vai trabalhar no centro do Rio de Janeiro lendo o caderno de economia. (sim, perdi a aposta, mas convenhamos, não sei o que é pior, esportes ou economia?) é exigir de mais, tudo bem. Você pode se enganar. Eu não.

Eu sei, sem dúvida alguma, que semana que vem, no carnanval, ele estará em Cabo Frio (uma espécie de extensão ou dimensão paralela à Ilha do Governador) com todos os seus clones que também largaram a rotina daqui para viver a rotina carnavalesca de lá, expelindo cerveja pelos poros. Sou capaz de listar todas as músicas que eles ouvirão ao longo do feriado, bem como as músicas que ouvem e ouvirão ao longo do ano. Consigo listar os shows e programas que frequentariam e consigo prever as palavras que sairão de suas bocas, expressando os pensamentos que consigo adivinhar. Triste. Só me resta esperar que os filhos deles façam a diferença que eles não fizeram.

O normal de mais me soa patético, apesar de eu ter consciência de que eu também, como milhares, estou seguindo um caminho que, apesar de soar anormal ou cool, é desprestigiado e foi e é muito batido. A diferença é que eu, independentemente do caminho que sigo, não sou passível de leitura assim, tão facilmente. Nem mesmo eu sei o que eu penso. E nem mesmo eu tenho ideia de onde estarei daqui a um mês. Posso ser observado, mas não sou absorvido. Eu consigo prevê-los. Todos eles.

Essas pessoas não me veem e não me reconhecem. Só eu tenho este privilégio da memória. São todos iguais, absorvidos em vidas tão "normais" que não são capazes de enxergar, não se dão conta de absolutamente nada. Nem mesmo do rapaz ao lado escrevendo sobre suas vidas desbotadas e sem nexo. Não me surpreendo. Como imaginariam tal absurdo? Não dão asas às possibilidades! Ninguém percebe? É como ter dinheiro suficiente para viajar e se limitar a ir à Disney! Acaso não pensam no tamanho do universo e nas possibilidades por ele oferecidas? Possibilidades são portas, estradas e mares que te levam a terras nunca antes vistas. Possibilidades levam a amores inimagináveis.

Eu tenho um mundo para ver e aprender. Um globo com 4 direções, 5 terras, 7 mares e quase 7 bilhões de pessoas para eu amar, machucar e permitir que me machuquem. Amo pensar nisso. Amo pensar a partir daqui, desta baía, vendo o mundo a partir desta barca. Amo, acima de tudo, ser a variável dessa equação supostamente previsível que é o meu passado.

O óbvio tem um limite.
E a diferença torna o único perfeito e faz do todo algo valioso.