segunda-feira, 28 de junho de 2010

Ashes

Mais uma esquecível noite de lua cheia para este mundo.

A terceira lua de inverno nesta cidade teoricamente calorosa é tão clara que ilumina tudo com certa naturalidade, fazendo com que o singelo frio pareça parte natural e eterna deste cenário tropical. O inverno tentou, sem sucesso, chegar em silêncio. Tímido como uma criança pálida que, enrolada em panos e cabelos longos, chama a atenção do resto da classe justamente por ser muda e apática. Patética.

Da janela do taxi eu analiso claramente os buracos escuros que a luz da lua teima em trazer à tona. A ilha, geralmente visível ao longe, hoje está imersa em neblina, totalmente invisível. Reflito sobre até que ponto eu gosto dessa não-visão quando, inevitavelmente, sinto o abandono da cidade numa noite de domingo me abraçar. Sinto o frio de alguns que dormem no chão da Rio Branco; ouço os gemidos daqueles que estão solitária e estrategicamente colocados em esquinas do centro da cidade. São muitos aqueles que tiveram suas luzes apagadas por conta da incompreensão alheia. Por um milésimo de segundo me declaro aos malabaristas de fogo, aos boêmios e aos artistas falidos. Aos ditos loucos e bregas e safados e caducos... Pessoas que brincam com o perigo diante de nossos olhos.

Então o fogo surge, por algum milagre, na minha mente. Ela subtamente vaga pelo incêncio que marcou certo morro na noite anterior. Lembro dos beijos que me tocavam enquanto o fogo consumia aquela rocha não tão distante. Lembro de me sufocar em toques, imaginando uma chuva de cinzas cobrindo minhas carícias diante do mar aberto. Desejo ver novamente a rocha em chamas e sinto um desejo incontrolável de tocar as cinzas que preenchiam minha mente. Quero me sentar e vê-las cobrirem a cidade inteira. Mas apenas vejo desaparecer, pela milésima vez e em graciosa decadência, a inocência da qual eu creio jamais ter sido dono. Eu vivo num eterno domingo, eu penso; e lanço um sorriso falso e vazio na tentativa de afastar de mim tal revelação. Tento em vão voltar o foco para a voz do motorista - a esta altura já um sussurro sem sentido - quando um acorde de piano me atinge.

Me pego então enfeitiçado por pequenos rascunhos de estrelas no asfalto. Minúsculo mosaico de vidro e sangue, num prelúdio de curva que precede o viaduto. Pequenos brilhos mesclados com tons vermelhos e branco-transparentes. Restos de sonhos, talvez. Ao fundo, palavras sem sentido para mim estão manchadas em muros cinzas. Sem dúvida um piano cairia bem ali. Sim, é justamente o elemento que falta para aquele quadro. E eu, com meus ouvidos dormentes de madrugada, sou o responsável por trazê-lo aqui.

Me torno cúmplice declarado de quem quer que tenha arranjado aquele cenário tão sutil, quase imperceptível, sabendo que tudo, meu caro, possui uma razão de ser. E o vidro, o sangue, a lua e a tinta foram colocados ali para que eu pintasse de vez o quadro de minha existência.

Eu vivo em um eterno domingo. Um lento domingo coberto de cinzas de uma constante e incontrolável saudade dos tempos em que a vida inteira cabia numa tenra manhã de sábado.