Esses aplausos e esses gritos me fazem continuar.
E você pode ser maior que tudo que me cerca, com exceção da música que corre em minhas veias. Eu deixo memórias perderem a cor, eu deixo estrelas caírem e eu rasgo cartas que sempre sonhei em enviar, mas não deixo e nem posso deixar de tocar essas músicas, anjo. Disso eu nunca vou abrir mão - e eu sei que você não me pediria isso. Foi só um pensamento, mesmo.
Digo isso porque eu, antes tão tímido e com medo das luzes, me encontro nesse exato momento encarando mais de mil faces, o que equivale a, sei lá, mais de dois mil olhos sobre mim. Todos com o mesmo propósito feliz, acompanhado de bocas cantando alto, e me banhando com uma energia que poucas vezes senti. Mal caibo dentro de mim, vivendo esse sonho. Meu coração agora era para ser do tamanho do mundo, cobrindo tudo que essa terra carrega. Em vez disso, ele está apenas do tamanho dessa cidade, talvez do país.
E eu sorrio um sorriso triste ao lembrar de quando eu era bem moleque e tudo o que eu fazia à tarde era me perder num labirinto de pensamentos preenchidos por plateias, luzes de palco e aplausos. Jogado em uma rede com meus CD's e meu rádio, meu maior sonho era um dia tocar o coração de quantas pessoas eu conseguisse ao mesmo tempo, os amarrando como pérolas num colar, todos unidos em um solo tocado num Barcus Berry. Que sonho tolo, ter um Barcus. E que ideia, achar que eles teriam violinos coloridos para eu pegar aquele que combinasse com as cores que carrego aqui dentro. Como era bom sonhar tanto, todo dia. Mesmo me perguntando quais seriam as chances de qualquer pessoa - eu, especialmente - conseguir tudo aquilo.
Sei lá. Na maioria das vezes, admito, tocar corações com algumas notas não é tão desafiador para mim. Outras vezes, como a nossa, é algo impossível de se fazer, porque corações são imprevisíveis e indomáveis; e no final das contas eu acho engraçado como algumas coisas podem ser. Apenas ser.
Isso sempre me pega.
Isso sempre me pega.
Todas essas pessoas aqui, elas cantam em gritos ferozes, com seus punhos ao alto.
Somos piratas quebrados e felizes, sempre correndo de alguém com uma garrafa de rum na mão. Somos bardos, somos magos, somos crianças que, tragicamente, nunca crescerão. E meu coração é como aquela corda de bandolim que cisma em arrebentar todo show, noite após noite. Corda quebrada e impossível de ser trocada. Insubstituível. Só temos um coração por vida; e usa-lo de forma sábia é uma noção básica de sobrevivência, mesmo que ninguém nos avise isso. Mesmo que ninguém nos conte que fingir que não temos um coração não protege aquele que temos e escondemos.
Eu não quero desrespeitar o Universo e tudo o que ele me trouxe e me traz. Não quero desrespeitar Deus ou os Deuses - se é que eles existem. Eu na verdade sei lá o que eu quero dizer com tudo isso. Eu sei apenas que não existem palavras para descrever o que é realizar um sonho desse porte. E eu reconheço isso e com toda humildade que encontro nas minhas células eu agradeço às estrelas que sempre me seguiram. À minha avó e seu piano. Ao acordeão velho no quarto do meio. Aos meus pais, que saíram de um conto de fadas.
Só que há um porém. E ah, meu caro, eu nunca subestimei a fúria de um porém. O poder de um quase. Esse poder que interrompe a melodia de sonho sonhado há eras. Nunca diminui o tamanho de um se.
Há um porém que carrego comigo a partir dessa música. Um porém que dilacera todas as praias que banham meu coração, lançando suas águas em maremoto contra todos os continentes leves que carrego em mim, com suas fronteiras infinitas e suas florestas e cavernas e clareiras. Todo meu mundo interior é virado ao avesso, saqueado e tomado por esse cataclismo que tenho carregado feito um pingente. Esse porém existe selvagem e silencioso em um lugar que, vazio e silente, deveria acomodar as coisas mais lindas que já senti.
Mil, dois mil, cinquenta milhões de corações seguindo o ritmo do meu pé esquerdo numa jig não se comparariam a olhar nos seus olhos e ouvir o som de nós dois. Eu acho que esse silêncio vai me seguir de palco em palco eternamente, cativando para sempre esse lugar vazio. Esse lugar onde nada cabe. Esse lugar que grita por um nome que evito ouvir, numa negação que quase me faz não compreender esses longos faróis que tem me seguido desde que isso tudo começou; Luzes verdes, roxas, vermelhas. E cabos, cabos, cabos e mais cabos. E mais luzes. E pessoas e seus olhos e seus gritos maravilhosos. Eu deveria me sentir um rei.
Ainda assim, me sinto como se estivesse em meu próprio quarto, sozinho com a chuva que chove em mim, querendo ser ouvido por alguém que mora longe do meu prédio. E não é engraçado como a solidão de dentro esvazia todo e qualquer lugar por onde nosso coração passa batendo? É como se as luzes se apagassem pelos postes.
Eu acho que eu poderia tocar para a realeza dos reinos mais imponentes. E eu poderia encantar nações com algumas cordas e mover planetas com meus dedos. Eu poderia ser senhor dessa vida, eu gosto de pensar. Ainda assim, dia após dia, eu não consigo - e nem conseguirei, honestamente - não ser arrebatado pelas atrocidades que um amor e um porém podem florecer e oferecer.
Mas esses aplausos e esses gritos me fazem continuar.
Mas esses aplausos e esses gritos me fazem continuar.