quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Violino


Há muito fui iniciado em uma arte
que não requer instrumentos, técnicas
ou até mesmo inspiração.

É a arte de amar aquilo que está ali,
calado no seio do futuro.
Sonho invisível, que tímido,
não chegou às minhas mãos.

Aprendi a esperar e adorar aquilo que desejo;
E obrigado a ferver no amor pelo invisível,
Fui iniciado contra minha vontade.

Aprendendo que se esperar, com paciência,
É uma virtude;

Amar o incriado é uma arte.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

ελεγεία (Elegia)


“But afterwards there occurred violent earthquakes and floods; and in a single day and night of misfortune all your warlike men in a body sank into the earth, and the island of Atlantis in like manner disappeared in the depths of the sea.”

- “Timaeus”, Plato -




Um raio rubro foi aquele primeiro a cortar o céu negro daquela noite. Veio com a rapidez de um pensamento frívolo, daqueles que passam desapercebidos pelas mentes tolas dos homens. Tal raio cortara as entranhas do céu declarando que o fim era ali, dando início à última tempestade que vi em minha antiga terra. A glória que reinava nos fartos tempos passados sangrava caída no chão, que sob os nossos pés desabava em grãos úmidos e sem vida, sem paz ou qualquer esboço de esperança. Juntamente com os raios, as gigantescas ondas abatiam-se sem piedade, lançando pesados golpes aos homens. Todos rastejavam como vermes, inconformados e banhados a lágrimas e ecos das antigas profecias. Com a queda das ondas veio a queda da grande torre; e com a queda da torre, a queda da realeza daqueles homens, estes sendo os primeiros causadores de todo o caos, aqueles que iniciaram a maior queda que a terra já presenciou dentro dos confins dos dois grandes e inseparáveis sábios que são o tempo e o espaço.

Despertei em meu leito com o grito de uma criança vindo dos jardins. Apesar de ter sentido há dias os pequenos tremores na terra, naquele dia havia algo a mais. Peregrinos vindos da costa oeste se encontravam desolados, sem suas casas e seus bens. Alegavam que ondas gigantescas haviam destruído tudo fora dos limites da costa. Em meio ao caos que tomava conta de meu vilarejo, o silêncio chegou com a queda do poderoso raio, que lançou sobre a terra um crescente tremor, tirando todos nós de nossos lares. Pouco a pouco o céu fechava-se em um tom negro de rebeldia e punição. Não restava dúvida de que as profecias se concretizavam. Senti o pânico tocar o coração de todos os meus companheiros. Permaneci imóvel.

Observando descrente e confuso o que se passava, tentei me encontrar em meio a triste guerra travada entre os Deuses e os homens. Todos corriam em diferentes direções. Ouvia gritos incandescentes, urros desesperadores. Me virei lentamente, em choque, ao me dar conta de que ali, entre tantos gritos sem sentido, ouvira meu nome. Da escuridão e da agonia, meu nome pronunciado veio como uma gota de luz em um escuro abismo. Não morri e nem me entregaria. Não eu. Jovem que era, tinha em mim a ambição típica daquele povo que em poucas horas se transformou na mais grandiosa lenda, passada de voz em voz, de sábio para sábio.

Virando subitamente vi minha casa afundar-se em míseros instantes terra a dentro. Minha vida inteira, minha família e lembranças agora estavam nas profundezas. A gota de luz se perdera no abismo. Corri. Não ousei olhar para trás. Corri rumo ao Leste guiado por instinto, sentindo uma forte presença vermelha nos céus. Não ouvi o medo, meus caros. Nem sequer pensei. Mas ouvi meu coração orgulhoso clamar por vida e senti minha alma queimar no desejo intenso de perpetuar a vida de minha poderosa nação. Não deixaria o fim daquela terra me levar.

Ao parar debaixo da copa de uma antiga árvore, o dia já havia se transformado em noite, descendo seu escuro manto sobre aqueles que outrora reinavam soberanos sobre os homens. Raios cada vez mais estrondosos ruíam as torres de minha amada terra, até então poderosa rainha dos mares... Corri por entre as árvores a fim de alcançar uma das últimas embarcações que saíam da costa leste rumo às abundantes terras dos colonos. Rumores diziam que tais embarcações se encontravam preparadas pelos antigos há muitas semanas.

Foi então que, passando uma última vez pelos bosques, em direção às praias, avistei de longe o imponente templo do Sol. Estava tão silente, tão calmo... Parecia inabalável a todo o caos que se instalara desde a manhã daquele dia. Era meu dever como filho daquela terra me despedir. Ali eu mal sentia os tremores e os ruídos assustadores que vinham das profundezas da terra. Suas paredes contavam toda a história da humanidade até então viva, através de cores, rostos e nomes dos quais jamais esquecerei.

Caminhando pela ala central lembrei do poder construído pelos homens através de milênios de existências naquelas terras azuis, filhas da água; e de seu interior pude contemplar pela última vez a visão da lua vista diretamente da janela maior. Estava vermelha, claramente visivel atrás de algumas nuvens; e como uma verdadeira soberana ela fazia dos raios seus meros aprendizes, pequenos sinos anunciando a fim daquele negro capítulo. Pareciam vir dela, caindo e afundando – talvez ornamentando, até - as terras em um cataclismo capaz de abalar mundos inteiros. Lembrei de minha esposa e pensei em minhas filhas, por pouco não desabando com o templo. Queria sucumbir e tomar minha parte na fusão que se dava entre a imensidão das terras com a imensidão das águas. Fui interrompido pelas paredes que começavam seu amargo lamento de despedida. Ajoelhado diante do registro indelével de minha história, beijei o chão e parti.

Corri sem me virar, sentindo as terras que deixava para trás de cederem à água. Corri, dando cada passo em nome de minha vida, de minha família e de minha terra, alcançando por fim as praias que continham em suas antigas areias as memórias infinitas daquele povo tão orgulhoso e soberano. A fúria da estrondosa batalha entre as terras e as águas tornava quase impossível ter esperanças. Deseperadamente corri sem rumo algum. Nunca em minha vida ouvira sons tão funestos e pesados. Doíam em meu interior, pois se não fossem os sons das dolorosas lágrimas de minha terra, eram os gritos dos Deuses. Verdadeiros urros titânicos.

Ao atingir as areias, para minha surpresa avistei três embarcações, prontas para arriscar uma fuga. Me salvei levando comigo apenas as vestes que estavam em meu corpo, sabendo que as chances de naufragarmos naquelas furiosas águas eram enormes. Assim, tudo que me restou dos últimos instantes em que estive em contato com minha terra desde que acordara era a esperança de ter vida e tempo para crer em tudo que estava se perdendo.

Afastamo-nos o máximo que pudemos, gritando como homens em guerra, na tentativa de sufocar os gritos e ruídos ensurdecedores que agora tomavam conta de tudo. Havia fogo, névoa e muito ódio em nossos corações. Diante da natureza - e dos Deuses conseqüentemente – nós somos impotentes. Pensei no poder de nossos Deuses, incomparavelmente maior que o nosso. Lembrei de como a minha raça os desafiara, tentando tomar seu lugar na terra. O som dos tremores repentinamente colidiram em um só explosão, nos lançando a incontáveis metros de distância. Ao retornar a mim mesmo, percebi os estrondosos ruídos se juntarem em um único som, por fim cedendo espaço aos sons leves da água, que já recolhia suas gigantescas ondas.

Pouco a pouco o fogo sumira e os céus calaram-se. Senti que toda a terra podia ouvir o triste fim de meu povo. Fim no qual tudo se perdeu num misto de terras e água, banhados por raios ensurdecedores e fogo. Em apenas um dia e uma noite todo o império e suas fartas terras sucumbiram nas frias águas do oceano. Restavam apenas nós, a lua vermelha e as águas.

A Atlântida não mais existia.


terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Samhaim


"As you turned to go I heard you call my name,
You were like a bird in a cage spreading its wings to fly
''The old ways are lost,' you sang as you flew
And I wondered why."

- The Old Ways, Loreenna McKennitt -



Olhos negros e fortes eram aqueles que com força incisiva se fixavam sobre o mar. Eram olhos que possuiam os tons mais belos da natureza e abarcavam em si todo o vasto universo, com todos os seus segredos e anjos. Com todos os seus Deuses e todos os seus demônios. O vento frio brincava em seus longos cabelos enquanto ela acariciava a mais terrível fera daquela embarcação em seu colo. E brincava com os Deuses ouvindo os prenúncios de sonhos que soavam da distante terra para qual seguia. Dono de tantos mistérios femininos, seu coração possuia as chaves das verdades. Ele sim conseguia ouvir o que aquela elegante fera tinha a dizer, conduzindo a jornada em ritmo de uma tranqüila fuga. Assim, em prece e com seus olhos perdidos na imensidão azul, ela acariciava calada, em uníssono com as águas que cercavam aquela rústica embarcação, o silêncio de quem foge dos homens cruéis. Fugia para um último abraço de sua amada mãe terra.

O motivo de sua fuga pelos mares era apenas um: o fogo. Nele perecia todo aquele que tivesse acesso às verdades da Grande Mãe. E em seu errôneo uso ele era obrigado a lançar chamas em milhares de mulheres, homens e crianças, que no fundo nada mais eram do que simples filhos da natureza, que jamais deixariam de lado seus círculos, suas danças e seus Deuses. Apenas o fogo, erroneamente comandado por homens-bestas, era capaz de impedí-los. E apenas o fogo, apesar de cruel nesta ocasião, os libertava de um mundo onde apenas um Deus poderia reinar, através do sangue derramado. Sangue pagão de quem carregava aquela que é tríplice no coração.

Perdido no passado era o tempo em que as forças opostas equilibravam a vida. Agora, em trevas se encontravam aqueles irmãos e irmãs, filhos da Grande Mãe, carregando o sangue que corre nas veias das árvores e dos rios. Almas leves que brotaram das flores e das pedras, outrora preenchendo as terras com suas cores e seus perfumes de Maio... Tantas perderam-se no fogo, enquanto raras tentavam se encontrar na água. Quase perdidas.

Tais almas navegavam guiadas pelo silêncio para a esperança de uma nova terra, rumo às clareiras e bosques que as receberiam em seus secretos altares como um palácio recebe sua realeza. Fugiam para uma liberdade temporária que acabaria em chamas mais cedo ou mais tarde. Seguiam para uma última celebração; e navegando em resquícios de doces sonhos de uma outra era, ela, como uma sacerdotisa, acariciava o silêncio como uma mãe acaricia seu filho doente.

Não crer? – Jamais. Não ousaria perder a fé naquela que sempre a guiara, pois sabia que em sua glória jamais pereceria. Sabia em sua alma que seu corpo era ilusão passageira, porém sua fé e sua arte poderiam sobreviver a qualquer ódio ou força de todo e qualquer homem. Cantarolava com orgulho e tristeza o hino à nova terra, sabendo que um dia, cansada da tirania dos homens, dançaria com vida na terra dos mortos; e sua arte renasceria em um tempo distante daquele, trazendo ela, seus irmãos e suas irmãs para um novo nascer do sol.