domingo, 20 de abril de 2014

Eclipse


A gota de suor que escorreu pelo seu nariz trazia em si o sal extraído de um ano inteiro de batalhas travadas, dia após dia. Uma batalha vencida, nos fins das contas, ainda é uma batalha. E batalhas arrancam pedaços imensos de nossos corações. O dela estava, pela décima-milésima vez, dilacerado.

Mais uma rasteira, mais uma vez joelhos lançados ao chão. Com quantos eclipses se faz um recomeço verdadeiro? Um tímido gemido de quem mais uma vez precisaria recolher cacos ensaiou preencher o quarto. Costurar um coração. Até quando trabalhar nessa colcha de retalhos?

Essa vida é recomeço sem fim.

Estava enrolada feito um caracol, abraçada a uma almofada verde-escuro. Prestes a sugar toda a vida que restava em suas células, ao tomar coragem para encontrar o ar necessário para levantar e recomeçar, o viu sentado em sua cama. O ser mais assustador que já cruzou seu caminho árduo. Parecia uma estátua.

Estava nu, e tinha longas unhas amareladas. Cada músculo de seu abdome branco levemente talhado pelas mãos de sabe deus quantas hordas demoníacas. Suas asas, parcialmente em cor-de-pele, estavam entreabertas e pareciam pesadas, mais um fardo que um sonho.

Seus olhos eram verdes e meio puxados, com um quê demoníaco avassalador. Seus cabelos eram negros, com cachos fatais que lembravam serpentes. Era assustadoramente lindo; e estava ali pronto para devora-la com fúria titânica. Aqueles olhos afiados, assustadoramente silenciosos, sabiam de quase tudo. Olhos antigos que viram os mundos nascerem e morrerem por eternidades. As maiores quedas dos maiores impérios. Aqueles olhos desejavam o ódio, se alimentavam de dor. E lá estavam para mais uma visita,  até encontrarem os olhos dela. 

Seus olhares chocaram-se como dois sóis em colisão. Ela ali, quebrada e mais uma vez cuspida pela vida, pôde ver toda a história da terra e do universo. Ouvir as engrenagens da vida. Os infernos que nunca cessam.

E ele, com sua fúria interrompida, sentiu pela primeira vez na sua eternidade a dor que os olhos humanos carregam. 

Seu olhar verde se quebrou em uma constelação de interrogações. E ela, sem mais vê-lo, encolheu-se feito um caracol.

Eu só preciso descansar.

Sua dor era maior que qualquer demônio.