quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Projeção


Começou como um doce fantasma que sai pela primeira vez de seu mausoléu, e seguiu bem lentamente enquanto abria passagem pelo ar com seu delicado perfume. Emanando mirra em sua levíssima dança, a fumaça do incenso vinha de mansinho para ajudá-lo em seu feito aventureiro. Começou pelos dedos dos pés: os envolveu, os acariciou e foi percorrendo seu tão conhecido caminho através dos pés, tornozelos e pernas até alcançar a cintura. Alcançando aquele estado ele respirou fundo e, embora tenha ensaiado exitar por um instante, lembrou de tudo que o esperava caso persistisse, permitindo que a antiga fragrância de mirra o conduzisse ao limite que o separava de tantas crenças humanas.

Abdômen, braços e mãos afundavam naquilo que soava como um delicioso sono; e se lembrava de tudo aquilo havia lido e de tudo aquilo que havia ouvido. Pouco importava se tudo que fora dito por suas tantas fontes era mentira ou não. O fato é que tais palavras o inspiravam a querer, a calar, a saber e a ousar. Ele queria conhecer. O que importava é que cada palavra capaz de tocar seu coração era ali uma peça fundamental. Verdadeiras professoras em uma prova que seria decisiva. Costas, pescoço, nuca... Afundando, se perdendo... se perdendo... Tinha a certeza absoluta de que adormeceria, botando tudo a perder mais uma vez. Seus olhos fechados não deixavam a penumbra do quarto o perturbar, fazendo ele se render de uma vez ao sono e se virar, desistindo de seu ambicioso trajeto. Agora sim ia descendo rapidamente como uma pedra no oceano. E seguia caindo de forma precisa, em queda livre, no abismo escuro e aconchegante de seu sono. Desistira sem saber que aquela entrega total viria a ser a chave que tanto buscava.

Então parou. Não estava acordado. Estava? Tudo estava imerso na escuridão e ele se sentia profundamente adormecido. Como ainda estaria ali, acordado, pensando? Lúcido! Estava pensando enquanto dormia? Não poderia. Claro que não. Esboçando uma conclusão ele ousou sorrir na sua face invisível de menino adormecido. E assim, naquele profundo rascunho de morte, uma energia pura e verdadeira veio repentinamente de seus pés, cruzando todo seu corpo até o alto da cabeça. Era isso, então! As palavras começavam a fazer sentido enquanto se sentia deslizar no meio do nada.

Sentiu-se encher aos poucos como um balão de gás sem fim. Foi ampliando seu espaço e seu contato com o mundo, sentindo-se do tamanho de seu quarto, de sua casa, de sua cidade! E quando sentiu que era do tamanho do universo, começou a movimentar-se no escuro de um lado para o outro em um determinado ritmo crescente. Sentia medo, justamente por compreender perfeitamente o que ocorria, quando ganhou força e abriu os agora peculiares – e verdadeiros - olhos de seu novo corpo. Olhou para baixo sorrindo ao ver a si mesmo, tão sereno, adormecido no aroma de Mirra. E mergulhou de cabeça no antigo espelho que há anos o desafiava a descobrir o que há por trás do mundo considerado real.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Feitiços aos Quatro Ventos


"No se puede vivir con tanto veneno
No se puede dedicar el alma
A acumular intentos
Pesa más la rabia que el cemento"

- No -

A luz azulada que entra pela janela agora, às 3:00 da manhã, é suficiente para me embalar nesse silêncio frio que vem do sul. Apesar de parecer - e juro, apenas parecer - triste e apático, eu gosto dessa luz e estou bem. Estou apenas pensativo, conduzindo os fios que traçam o exato ponto em que eu atinjo o limite de seja lá o que for que eu sinto, para retomar o traçado de um caminho em outra direção. É assutador - e fascinante, eu confesso - a forma pela qual as mudanças mais arrebatadoras podem vir. Tão repentinamente, ainda assim de forma tão delicada... Mudanças podem ir e vir. Eu, por hora, quero apenas o meu campo de girassóis. Todos eles da cor dos seus cabelos. Todos eles cantarolando segredos aos pés de meus ouvidos...

Eu prometo que assim que essa luz se retirar, se dissipando, lenta que é, com a sua sinfonia da madrugada e seus vampiros falidos, eu vou me levantar, lavar o rosto e prender meus cabelos.

Que bagunça, meu Deus. Que bagunça.

Vou respirar fundo.
Vou catar os cacos e vou cuidadosamente colar as partes que faltam no meu quebra-cabeças.
Contudo, não vou persistir nesse enigma maior que é você.
Deixo aqui registrada minha desistência.
Mas quero que saiba que vou juntar os restos;
Que vou lançar memórias em minhas caixas feitas à mão.
E vou recolher estrelas silenciosas pelos cantos de minha casa;
E vou ousar colocá-las de volta nas paredes e nos tetos de onde as derrubei.
Vou lançar feitiços aos quatro ventos e sorrir.
Vou abrir as portas da minha mente para você, de uma vez por todas, fugir.

Prometo.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Mares Ardentes


Com alguns traços de decadência eu vivia em meu próprio universo... Vivia tão fechado, mas tão em paz... Cada coisa era calculada em seu espaço e em seu tempo de forma livre, porém nunca em dissonância. Não existiam conceitos. Havia um caos estruturado, que apesar de caos, possuía uma esfera harmoniosa ao seu redor; uma harmonia natural que transcorria cada astro de meu céu. Eu passava meus dias a caminhar pelos meus mundos, admirando minhas próprias criações e a canção de minhas totais - e até então intocáveis - autosuficiência, onipresença, onipotência e onisciência.

Meus dias eram preenchidos de sóis das mais diversas cores, sendo o meu favorito um gigantesco sol esverdeado, criado em um dia de peculiar tranqüilidade. Naquela vida eu tinha a mim e isto por si só preenchia todo o espaço de minha criação. Assim, meu coração sempre bastara, fazendo com que eu e minha consciência nos completássemos e ecoássemos universo a dentro, refletindo minhas próprias leis nos sóis, nas estrelas e nos mundos que eu mesmo criava. Eu criava incessantemente com a paixão de um artista em paz profunda. Se tratava de um confinamento prazeroso, aquela minha vida. Solitário e absoluto, sem nunca ter havido sequer um dedo mortal que ousasse tocar os portões de entrada de meu silente universo, eu reinava e existia em cada espaço.

Contudo, em algum momento perdido, tal paz se dissipara: a trança de minha criação havia sido quebrada. Em alguma era da qual eu mal me lembro, uma certa mancha surgiu no maior sol de meu universo. Então os mares de meus mundos começaram a arder delicadamente, e algumas constelações se perderam... Era o prenúncio de algo maior se aproximando. Algo que desejava tomar as rédias de minha vida para sempre.

Gradualmente, os ventos não mais obedeciam aos meus comandos, e minhas estrelas vestiam cores não escolhidas por mim. A harmonia natural existente em meu universo não existia mais. Outro Deus governava o centro do meu espaço, sendo suas mãos e suas obras os maiores mistérios que já conheci e amei. Sim, eu o amei naturalmente, me rendendo aos seus poderes como um escravo que se vende por vontade própria, dançando e me envolvendo nos sons invisíveis de seus feitiços de Deus intruso. Como meus mares ardiam! Seria possível não me render a alguém tão poderoso a ponto de descubrir a entrada para meu universo? Quebrara meus portões cristalinos e entrara sem dó pelos meus encantados jardins.

Em meio aos meus mares ardentes eu o amei mais que tudo, pois meu Deus não era mais em mim, e sim nele. E tudo ardeu mais com a sua chegada. As direções se confundiram, as terras estremeceram e eu, cego, apenas o amei. Jamais pensara que havia poder maior que o meu, e tamanho poder somente me desorientou, me aprisionando em profundos olhos negros. Eu agora só existia em suas coisas. Principalmente em seus olhos, como um reflexo, como a prova de que meus esforços, ao fim, eram pó diante do poder de seus cabelos negros e de suas asas avermelhadas. Eu não sei até que ponto o amei ou até que ponto amei o seu furioso poder, pois eu constantemente morria dez mil vezes ao ouvir sua poderosa voz, naturalmente capaz de fazer um universo inteiro sucumbir e ressurgir de forma melódica e grosseira a partir de sua falsa luz de vidro, do mistérios de suas mãos e de suas estrelas geladas.

Eu cedi meu templo, minha alma e meu reino inteiro a este Deus. Cedi as chaves de meu paraíso a ele, para depois, caído, perceber que o mesmo trouxera as trevas e a prisão da carne ao meu universo. Os sóis, antes tão coloridos, agora ganhavam a mesma cor avermelhada e queimavam tudo que ousasse se aproximar, os mares começavam a agitar-se de forma brutal, agredindo as terras antes tão amigas - e agora tão secas - e as estrelas, em triste tentativa de fuga, vez ou outra caíam e chocavam-se com os mundos mais encantados e pacíficos. Eu presenciei a terrível guerra entre os astros de meu próprio universo! Não houve amor no seu reinado, intruso Deus! E eu, caído, não passo de mais um cavalo abatido em seu grotesco e infinito campo de batalha, arena vazia na qual apenas tu poderias vencer, coroado pelas flores de sua vaidade sem fim.

Hoje eu me encontro vagando sem um universo próprio, preso nos olhos daquele Deus intruso e tirano que, sabendo de minha nova prisão, evita olhar nos olhos de outros deuses. Tal criatura bem sabe, em seu negro interior, que seus olhos - possuindo minha essência - suplicariam: Não me deixem conquistar outras terras! Não me deixem destruir outros paraísos!



Ele conquista os mares alheios.
Ele os faz arder.



terça-feira, 23 de outubro de 2007

Sobre a Chuva e o Universo


Tudo o que eu faço é observar. Não sei ao certo se isso se trata de uma bandeira de desistência, ou apenas de uma ocasional descida. Entretanto, tudo o que eu faço é observar. Não sobrou amor em canto algum do mundo para regar as minhas flores; e a existência agora tem duas faces muito bem definidas. Faces as quais vez ou outra naturalmente se chocam em um estrondo esurdecedor, iluminando e queimando tudo com força de supernova crescente. São duas estrelas absurdamente gigantescas que colidem na plena imensidão vazia do Universo. Em meio a essa guerra descomunal, eu sou uma gota pequenina de qualquer coisa indiferente. É o caos na minha vida. É a desordem que transborda do topo do vulcão supostamente adormecido que é a minha serena aparência. Disfarçada bagunça.

Só há Chuva por aqui. Há horas. Não movimento um músculo. Nem sequer pisco. Eu só penso. E como é engraçado, isso... Dizer que quero fugir soaria tão pateticamente batido... Clichê tão pobre, tão podre e tão não-convincente que até prefiro ignorar. Ah, mas definitivamente não estou aqui. Eu fugi faz tempo, meu amigo. Eu apenas esqueci de ir. Eu esqueci de me retirar. Esqueci de oficializar a minha fuga. Provavelmente por falta de coragem... E confesso que agora, neste exato momento, eu não estou nem aí. Eu não me importo com absolutamente mais nada. E confio isso somente a mim mesmo e, obviamente, a você.

Estou aqui há horas ignorando minha vida por conta de querer parar. Por conta de ter de fato parado – só um pouquinho – sem o consentimento do Universo. Sim, pois aparentemente tudo continua mesmo que nós, não mais agüentando, paremos. Eu me sinto é atropelado, isso sim. Atropelado pelo Universo inteiro. O problema é que, como de costume, eu não me acostumo.

Fato é que no fundo eu gosto mesmo é de ouvir a chuva. Ainda mais em um ano como este, em um mês como este, em uma semana como esta e em um dia como este. Eu gosto é de ouvir a Chuva em uma vida como esta. Ela, a Chuva, vem sem pedir licença. Você deve saber, eu acho. E por mais que eu queira fugir, no fundo eu quero apenas ouví-la. Eu sei, não é algo simples. Mas eu a ouço, pois ela me diz que ao fim do dia sou apenas eu. Nada a mais, nada a menos. Somente eu. Contudo, veja bem: eu não quero ser apenas eu. Não aqui. A idéia de "só", aqui, me dá arrepios, entende? Complicado? Eu disse que não era simples. No entanto, apesar dos pesares, ela, a Chuva, não vem para mentir. Então eu a ouço e espero bem aqui até ela ir embora... Parado. E tudo o que eu faço é observar.

Eu deixo a Chuva, o Mundo e Universo seguirem. Como se por algum milagre, caso eu precisasse, eles fossem me ouvir.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Dobram as Campânulas


"Come away, O human child!
To the waters and the wild
With a faery, hand in hand,
For the world's more full of weeping than you can understand."

The Stolen Child - W.B. Yeats


O quarto era rústico. Apesar de abrigar móveis antiqüíssimos feitos da madeira mais fina da região, o conjunto todo trazia uma simplicidade admirável. Diante das etéreas auras das crianças, tal aposento lembrava um deserto escuro e frio. Tão vasto... Muito fácil seria se perder dentre seus mistérios! Embora tivesse em suas antigas paredes muitos quadros e imagens sedutoras, apenas o imponente espelho, no canto do aposento, dava alguma vida ao lugar. Fora um presente anônimo, dado junto com as crianças, ao serem abandonadas na porta de dois estranhos. Tinha em sua moldura pequenos rostos e pequenas asas, todas ornamentadas com flores e pedras preciosas das mais diferentes cores. Era enorme e parecia um portal. Isso! Um portal! Exclamava Nanna ao examinar o antigo espelho, quase hipnotizada pela sua própria imagem. Em doze primaveras de vida, e com um sinal esverdeado entre seus cabelos vermelhos, carinhosamente chamado de “beijo de fada”, nunca tivera tanta certeza de não pertencer aquele lugar. Simplesmente não conseguia - Se é que tentava - esconder sua misteriosa origem. Todos os seus gestos impediam que tal verdade fosse escondida. Cada movimento revelava sua não-existência àquela vida.

- Não creio em ti, da ra ra... Não creio em ti! Cantarolava Midir, o irmão mais novo, ao se preparar para deitar ao lado da querida irmã. Em dez invernos de vida, o menino tentava como ninguém esconder seus mais íntimos sentimentos e sua profunda fé nas palavras daquela que amava como uma mãe. A sabedoria implícita que emanava da boca de Nanna o apavorava, pois a sabedoria está diretamente ligada à verdade. E esta, até então, sempre doera. Nanna falava de forma doce, mas com traços escuros de quem não poderia esconder uma certa angústia. Falava com os olhos fixos no nada, e suas palavras, dizendo mais do que ela em si poderia dizer, se espalhavam por todo o quarto como vapor:

- “Cantam aos pés de meus ouvidos. Ah, que doces são aquelas vozes... Hão-de cantar para sua alma também. E hão-de ornamentar com flores seus cabelos, Midir... Espere e verás, querido irmão!”

Deitados de mãos dadas em meio à seda branca da cama, ambos sabiam em seus corações o que os esperava. Tentavam dormir com uma certeza velada pelas paredes daquele quarto de onde as únicas saídas para um mundo melhor eram a janela e o espelho. A porta, não. A porta para o mundo cruel de seus pais adotivos, jamais. Por hora só queriam dormir. Queriam sonhar para sempre.

No alto daquela mesma noite, pequenas risadas se fizeram ouvir de longe. Vinham do âmago silencioso do luar, que tentava sem sucesso os envolver em sono. As risadas vinham com o vento que tentava abrir a janela, e vinham com um ritmo certo em misteriosa melodia. Seriam sonhos? Sim! Seriam! Sonhos que vinham pelo ar para levá-los embora dali.

- É chegada a hora, irmão. Sussurrou Nanna, pegando Midir pela mão ao ouvir seus visitantes. Passo a passo, ambos caminharam até a janela. Primeiramente, um passo em nome da vida da qual foram privados por anos. Logo em seguida, outro passo, este em nome da liberdade prestes a ser alcançada. Em profunda paz deram passos em direção ao eterno até serem supreendidos por um estrondo que, com um intenso golpe de ar, abriu brutalmente a janela, lançando algo em direção ao antigo espelho. Os distantes risos se fizeram mais altos e mais intensos, e ao som dos pequeninos visitantes os irmãos viram repousar no chão do quarto um pequeno ramo de campânulas cor-de-rosa. Instantaneamente sabiam do que se tratava tal presente dado por aqueles pequenos deuses caídos, que em pequena algazarra cantavam:

- “Comam o número correto e nosso reino diante de seus olhos se abrirá! Comam além ou aquém do esperado, e suas doces almas hão-de ficar para sempre seladas no silêncio!"

De mãos dadas e de olhos fechados, Nanna e Midir dividiram e mastigaram as campânulas em um delicado ritual. Trasnbordavam em euforia, rodopiando pelo quarto acompanhados pelos pequeninos em uma festa caleidoscópica e colorida. Eu acredito, eu acredito, eu acredito! Exclamavam em uma descontrolada fúria enquanto dançavam intensamente no ritmo da liberdade alcançada. Eu acredito, eu acredito, eu acredito! Gritavam sem qualquer limite em um círculo intenso, envolvidos no êxtase da liberdade secreta trazida pelos seus visitantes. As campânulas dobravam sinistramente guiando aqueles que outrora foram arrancados de um lar digno de sua pureza. Assim, naquela mesma noite, ambos os irmãos deixaram para trás aquela vida, e perderam-se por entre pétalas cor-de-rosa, permanecendo envolvidos na magia das campânulas até despertarem em um mundo no qual eram, como há muito sabiam, Príncipe e Princesa.

domingo, 26 de agosto de 2007

Manhã de Segunda-feira


Perdido em devaneios por conta de uma antiga teia de aranha, ele perdeu o foco de seus pensamentos mais concretos e despertou para o outro lado da eterna charada que é a vida. Pela janela ele admirava a gigantesca pedra que repousava como um sonolento vulcão além de alguns morros e muitas árvores. Aquilo sim o fascinava com força bruta e verdadeira, com paixão ardente que consumia cada célula, cada osso e cada músculo de seu corpo. Aquela era a coreografia da eterna dança de seus devaneios. E tal dança simplesmente consistia em olhar com os olhos ocultos da alma.

- Bom dia, ele sussurrou sorrindo. E envolvido no frio da manhã viu o sol, ainda lento e suave, chegar manso de árvore em árvore, como um imperador que saúda filho por filho ao despertar de longo e escuro inverno. Acompanhou os antigos braços solares subirem os morros e abraçarem a antiga pedra. Sempre acreditara que ela, tão bem acomodada, fora colocada ali por mãos de gigantes. Era simplesmente muito perfeita para ter sido mero acaso da natureza. Aliás, o que viria a ser o acaso, afinal, na natureza? E o que seria, afinal, a natureza em si? No fundo, como todos nós, sempre soubera a resposta.

Sabia que não pertencia àquele tempo, àquela vida tão ríspida a qual se submetiam os seus contemporâneos tão bem sucedidos e poderosos. Acompanhado pela abandonada teia de aranha, e com os negros olhos fixos na imponente pedra, ele se sentiu uma criança roubada de seu berço. Então sentiu falta de pessoas que não conhecia. E lembrando de pessoas as quais nunca tinha visto, sentiu saudade de um tempo que não tinha lugar na antiga história do mundo... Apenas sorriu.

- O jeito é sonhar, disse a si mesmo, ao ser puxado brutalmente para a aula de literatura que, como um céu rasgado por um cometa, havia sido interrompida por um estridente celular que trouxe fim aos meros – porém nunca infundados – devaneios de um jovem sonhador.

sábado, 30 de junho de 2007

Lembro-me das Árvores


Suavemente meus olhos se abriram. Havia luz. Uma suave luz que envolvia discretos pontos luminosos espalhados por todos os lados. Na gentil presença da manhã eu tinha chegado ao mundo; e nascera de uma singela gota de orvalho, solitária e tímida, levemente acomodada em uma pomposa pétala de rosa. Lembro-me de ouvir, comandada com maestria pelos pequeninos alados, uma sinfonia circular e crescente composta de fina chuva e canto de pássaros. Lembro de pequenos rostos sorridentes me reconhecendo, e lembro de olhar com curiosa felicidade aqueles que saudosamente ali me recebiam. Sem saber onde me encontrava, não temi, e gentilmente suas gravíssimas vozes se fizeram ouvir, vindas do âmago da Grande Matriarca. Lembro-me muito bem do tremor das terras ao som daquelas vozes maternas. Suas palavras não eram ditas – não haveria como - e mesmo assim se faziam presentes e ecoavam como verdadeiros cataclismos nas antigas planícies daquele mundo há muito esquecido. Eu, tão simples e fechado, havia nascido no mais belo bosque construído pelos Deuses.

Lembro-me de ouvir que as chuvas viriam para lavar as almas recém-chegadas, e que os trovões manteriam longe todos os perigos que assolassem nossas terras. Me foi dito também que minha força viria do Sol, ao passo que meus sutis saberes viriam da Lua; e lembro-me muito bem do respeito que sentia naturalmente pelas vozes daqueles que me acolhiam, vozes que permeavam tudo. Vozes que ecoavam por cada canto daquele sagrado bosque. Lembro de saber que ali sim, de fato, eu estava entre os meus.

Havia prenúncio de sonhos naquelas terras verdes. Muitos sonhos. Alguns a serem plantados, outros a serem colhidos. Segundo as vozes, de vez em quando eu me acomodaria nos braços das imponentes raízes para observar os pequeninos em suas distrações, para abençoar inocentes juras de amor às sombras das anciãs ou simplesmente, como a grande maioria costumava fazer, para sentir as energias titânicas que pulsam no longínquo interior da terra. Da mesma forma foi-me dito que nas noites de Lua cheia todos nós festejaríamos em círculos, e que enquanto fôssemos puros o verão perduraria sem fim, como um sonho eterno.

Haveria perigos também, alertaram-me as vozes. Aquelas vastas terras que me esperavam em minha longa jornada me trariam armadilhas, dores e medos. Contudo, lembro-me de ouvir que o amor verdadeiro era imortal como minha essência, e que um sorriso seria sempre a melhor ferramenta nas horas difíceis.

Lembro-me de ser avisado de que caberia a mim despertar a vida e a beleza inerentes a cada folha, a cada flor e a cada fruto, e que meus olhos naturalmente me trairiam caso eu tentasse dissipar a verdade com falsas palavras.

Finalmente, fui lembrado de que os homens há muito haviam se perdido por entre seus próprios poderes, e que eu jamais deveria perder de vista as estrelas, pois elas, como meus irmãos e irmãs, também seriam minhas confidentes ao longo de minha jornada.

Levantei tímido, buscando força para utilizar minhas tão singelas asas, naquele primeiro momento tão fracas, rumo ao raio de Sol que entrara por entre os tetos verdes daquele sagrado palácio de folhas. Ajoelhei-me diante da mais antiga árvore daquele bosque, jurando viver cada segundo em nome do bem daqueles que ali habitavam.

Mais um ciclo se iniciara em minha existência. Eu podia sentir que vivia através daquele poder. O poder daquelas vozes, daqueles trovões. Um poder que vinha das escuras profundezas quentes, subindo por entre as terras, em espiral, trazendo à tona a verdade das verdades. Jamais subestimei a sabedoria daquelas antigas árvores que por eternidades me receberam em diferentes existências. E até hoje cuido de tudo aquilo que vive sobre as gigantescas raízes de minhas bondosas mães.

domingo, 17 de junho de 2007

Fantasma


Sombra dos reflexos, lembrança perdida
Sou brinquedo de lado, linda pedra partida.
Sou o outro caminho, mágico falido
Sou o sonho esquecido e teu ego ferido.
Prazer, sou eu, teu maior inimigo.
Senha decifrada, escada infinita
Sou a asa quebrada, vento forte na aveninda.
Sou o mau exemplo, tua fruta proibida
Sou o fantasma da perda, tua anti-utopia.
Não contente, sou também, tua triste melodia.

Outra Polaridade


Às vezes, quando a lua se esconde
Minha falsa luz se faz vapor
E eu paro sereno diante de minhas águas
E olhando para o nada, vivo meu torpor.
Respiro e espero o leve manto negro de seda descer
E no contato intenso e íntimo com meu lado escuro
Eu sinto a vida pulsar
E minha raíz crescer.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Com Estrelas


Parado nesta praia eu olho as estrelas. Eu quero ferver na certeza aguda de que eu sou o único ser humano no universo inteiro a contemplar esta visão. As estrelas me entendem. Eu as ouço, e elas me confortam, elas me envolvem, elas me sustentam. Ah, e as ondas... Essas ondas que não param nunca. Nossas almas que não param nunca. E todos nós - ondas e almas - vamos indo e vamos vindo com nossos segredos. E este momento é um segredo tão doce... Só eu, as ondas e as estrelas. Tão longe das luzes, dos homens e de seus silêncios ferozes. Será que há mais alguém enxergando essas estrelas de algum lugar? As ondas quebram, o vento bate e com um golpe repentino de ar aquela pontada me invade: não há sereias nesta praia, não há lua, não há amor. Mas então porque eu sei, com cada parte do meu corpo, que você também está a olhar este céu, a contemplar este universo? Já não sou mais eu porque sou água, sou areia, sou vento... Mas ainda assim te sinto aqui dentro! Eu falhei em ser só. Falhei. E hoje esta praia é o fim do mundo e eu te ouço incessantemente... Mas espere, meu amor, veja bem: não te ouço com ouvidos. Eu te ouço com estrelas... E te espero.






Segredos Marinhos


Ao me dar conta do pecado que cometi, saí correndo por meus largos e infinitos corredores. Neles ecoavam melodias tristes, palavras em vão e juras de amor. Percorri todas as alas e corredores daquele castelo, mas dentre tudo que suas poderosas paredes ecoavam, não havia sequer um pecado, um segredo mortal que alguém tivesse deixado escapar. Sem saber o que fazer, cruzei a porta principal, os jardins e finalmente os portões. Pedi aos Deuses um modo de guardar meu segredo em algum lugar que não fosse meu coração e caminhei até a beira do penhasco, lugar alto que me mostrava tudo que a luz e a escuridão podiam alcançar. Pesava em mim a presença de tão mórbido segredo. A quem eu contaria? Quem me perdoaria? Toda aquela imensidão, aquele mar e aquele céu... Nada daquilo me acalmava. E se eu gritasse, talvez? Quem sabe com um grito forte - como aqueles que eu ouvia em batalhas em outras eras, outras vidas - o segredo pudesse se dissipar em meio ao azul? Respirei fundo e me preparava para me livrar de meu fardo com toda fúria quando vi brilhar na areia, lá embaixo na praia, um ponto branco.

Desci pelas pedras e notei que as ondas não me queriam por perto. Elas me acertavam, me atacavam com uma cólera decidida. Conheciam - a seu modo - meu exato objetivo. Não desisti. Segui meu caminho em direção ao ponto que me iluminava, que me atraía e um calafrio agradável tomou conta de mim ao ver que o ponto, pálido, nada mais era do que uma singela e encantadora concha. Por mais simples que fosse, ela sabia que ao longo de toda a costa, apenas ela estava ao alcance de alguém. Sim, ela era a única concha de toda a costa, sozinha e vaidosa, esquecida em meio àquela enorme faixa escura de areia esverdeada. Não havia uma estrela no céu, não havia testemunhas. O brilho da concha era a única luz da praia, a única luz existente em meu reino e eu, pecador tirano, estava a um passo de sua pureza. Teria alguma criatura visto tal pedaço de luz e a ignorado? Que sereia teria deixado ali, em areias tão escuras, tal artefato? Por quê? Perguntas tolas surgiam em minha mente. As ondas transpareciam todo o seu desespero diante da cena. Eu podia ouvir seus gritos, suas súplicas.

Nenhuma onda, nenhum trovão - ou Deus - foi capaz de me impedir. Tomei a delicada concha em minhas mãos, trazendo a mesma à altura de minha boca. Assim, transmiti meu pesado segredo àquele ser puro que, até então, desconhecia a escuridão que o homem desperta em si. Senti a angústia e a tristeza tomarem conta das ondas, do vento e do céu, que recolheu seus trovões. Já estava feito: meu segredo não se encontrava mais em mim e a concha estava cinza e seca. Talvez morta. Voltei a mim ao perceber que um golpe de ar repentino lançou a concha em direção às ondas, levando-a para longe dali com seu novo segredo - ou sina - de volta às suas sereias. Fui covarde, fui tirano, fui egoísta... Fui, da pior maneira, humano. E após três luas, pude avistar três sereias mortas e frias de tristeza estiradas sobre a antiga areia escura. Corpos sutis que, em algum momento, tentaram ouvir um segredo que não lhes pertencia.

O Bosque



- Chegou a hora do despertar, chegou a hora. Disse ela decidida tomando nas mãos a pesada caixa de mármore negro. Saiu pela porta de madeira rumo ao bosque, escuro e pulsando de sede de vida do outro lado do campo. Seguiu sem medo de nada. Tudo ali era parte dela e ela era parte de tudo que ali vivia.

Chegando à clareira, colocou a caixa dentro do círculo, sentou e esperou. Não havia sequer um inseto por perto, o que fazia do silêncio o som mais alto do mundo... Ecoando nas árvores mortas, vibrando nas árvores vivas, o silêncio doía. Então por trás das nuvens roxas ela surgiu crescente, branca e serena, como uma sacerdotisa. Mal olhou para o céu, e como um milagre qualquer, sua primeira lágrima escorreu refletindo as sete cores. Sem pensar duas vezes caminhou gelada até a caixa e retirou com todo cuidado a sua flauta. Mais uma lágrima, mais sete cores de encontro à terra.

Assim, pôs-se a tocar - mesmo sem saber como - toda e qualquer nota. Notas brotavam de sua boca, notas voavam floresta adentro. Aquilo era a sua vida, aquela era a sua arte. Uma arte que trazia vida às flores e árvores. Em cada nota uma semente, em cada semente cores infinitas. Aos poucos a lua brilhava cada vez mais e aos poucos - um a um - os vaga-lumes foram surgindo. Não demorou muito até as borboletas, as fadas e os duendes surgirem para a celebração. Tudo ali fazia parte dela, e tudo ali dialogava intensamente com seu coração. Porém, nada a emocionou tanto quanto aquele unicórnio que, tímido e branco como a lua, a observava de longe com uma rosa na boca.

A melodia já estava no auge, luzes brilhavam por toda a clareira. Ela ouvia tambores. Rodava, rodava e rodava. Ela ouvia cordas. Rodava, rodava e rodava. Queria aquele sentimento para sempre. Rodava, rodava e rodava. E quando não mais podia suportar o peso de seu corpo, sentiu-se levitar em espiral. E naquela espiral permaneceu até o sol bater de leve em seu rosto. Ao despertar, olhou em volta de si mesma e percebeu: não havia mais lua, não havia mais fadas, duendes ou vaga-lumes. Mas não ousou desacreditar... E sorriu ao ver repousando, ao lado da caixa de mármore negro, uma linda rosa vermelha.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Sumiregusa (Violeta Selvagem)


Para além dos confins de meus jardins externos,
se encontra a flor que sobreviveu ao dilúvio dos tempos antigos.
Suas pétalas únicas são luas silenciosas cobrindo céus sem estrelas.
Seu odor, perfume lúdico, viaja por mares profundos, terras distantes e topos malditos.
Sua luz guia tolos por entre as árvores gigantes e imponentes.
Seu caule de seda, letal, nasceu dos fios de cabelo das mais belas fadas;

e seu pólen, etéreo, é o manjar dos Deuses decadentes.

Eis meu maior tesouro.
Eis meu maior tormento.
Eis minha maior blasfêmia.
Eis meu desejo crescente.

Para além dos confins de meus jardins externos,
existe em silêncio a Violeta Selvagem.
Dama lírica das noites quentes, rainha impura entre as sílfides cintilantes e transparentes.
Sua aura emana luz de eclipse com gosto das frutas sagradas e, ao pé do verão,
constelações de pecados surgem ao seu redor, incandescentes.
Sua voz é orvalho em teia de aranha furta-cor
e seus desejos, em lua crescente, se tornam raivosas tormentas de amor.

Para além dos confins de meus jardins externos,
reside aquela de quem sou aprendiz.
Seu doce veneno corre em veias estranhas, escravizando demônios, sacerdotes e melodias sutis.
Sua beleza já espalhou o caos e sua tristeza já plantou a dor.
Suas raízes sustentam palácios, contudo lhe falta a posse do amor.
Lá, bem para além de meus jardins,
se encontra aquela que conquistei inutilmente por eras.

Aquela que, ao vestir seu manto, não quis ouvir à música das esferas.
Lá, bem para além de meus jardins externos,
governa aquela que possui meus dias e minhas noites como bobagens.
Aquela que possui minh'alma presa em suas pétalas roxas de violeta;

Violeta Selvagem...


terça-feira, 29 de maio de 2007

Torre


Levantou de sua luxuosa cama após 3 horas de pensamentos ininterruptos. Envolta na seda branca que ornamentava seu leito, olhou ao seu redor. Tudo ali era tão seu há tanto tempo que ela já não suportava nem mesmo o incensário azul. Ali, naquele momento, tal objeto era o alvo de seu ódio. Cada detalhe, cada curva era devorada em uma raiva crescente pelos seus olhos. Eles forçavam um desprezo pelo incensário apenas para terem uma vítima e, de certa forma, uma companhia.

Era branca como uma boneca de cera e tinha nos olhos e nos longos cabelos negros o reflexo de milênios de lembranças. Costumava embalar seu carrossel de pensamentos ao som de um cravo em tons menores. Amava os bemóis por sua doce melancolia, embora vez ou outra, quando o sol a conquistasse, desse asas às melodias em Ré Maior.

Sempre fora colocada em um pedestal perfeito. De uma redoma de cristal, ela sempre enxergou o mundo como uma parte de si à qual nunca teve acesso. Apenas os mundanos tinham acesso ao mundo que ela via lá fora, lá longe, abaixo. Mas, por Deus! Não era ela mundana? Que espécie de graça era atribuída a ela? Por que não poderia se juntar ao mundo?

Todos os que a amaram sempre a tiveram como um anjo que deveria permanecer em um altar. Por isso foi trancada lá em cima como uma Deusa e se fechara. Não se orgulhava de seus supostos méritos. Se fechara por não ter a luz que todos enxergavam. Era uma farsa inconsciente muito bem elaborada. Cada gesto, cada traço planejados nos mínimos detalhes. Não era pura, não era boa e muito menos bela. Ainda assim, eram tais títulos que eram presos a ela, como falsas justificativas, todas as vezes em que o amor lhe dava as costas e a deixava tocar, com cada poro, a face do desespero lá no alto de sua torre.

- És como uma jóia rara. Não te mereço. Disse-lhe seu último amor. E tudo o que ela sentia era raiva. Ódio daquele imponente pedestal que a guardava em um eterno exílio e a fazia assistir através das paredes cristalinas seu mundano amor descer os infinitos degraus rumo ao mundo real.

- Para o inferno minha suposta inocência! Ela gritava. – Para o inferno minha rasa pureza! Não sou isso que pensam! Por que me mantém aqui?! Não sou isso que pensam!

Ah, o mundo não exalta o verdadeiro belo... Este é esquecido e trancado embaixo da terra e por dentro dos corpos vazios que hoje vagam por todos os cantos... E assim a vida segue e vai seguir por um bom tempo.

Até hoje, na sétima lua crescente do ano, é possível olhar para o céu e vê-la vagar em seu pedestal branco de luar. E vaga com os olhos perdidos, de um lado para outro, como um pêndulo ao som de uma valsa infinita e escura, que ecoa em meio à incessante fragrância provinda de um incensário azul.