quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Do dia em que quase morri

Eu tenho duas notícias: a boa é que, bem, hoje, a grande maioria das pessoas não acredita em sonhos premonitórios. A má, entretanto; e ao menos para mim, é mais impactante: eu não faço parte desta maioria.

Pensar na morte é estranho. Não me preocupo com ela em si mesma e por si mesma, mas sim com tudo envolvendo o que vem depois dela. Como vou, quem vem me buscar, quem encontrarei e, mais importante, que rumo teria a dor que eu provavelmente deixaria. Não penso na minha dor física. Me preocupo mais com o que fariam de meu violino, por exemplo. O que é extremamente curioso, já que odeio dor e sou a pessoa mais medrosa que conheço. Então o que me assusta na morte é justamente a dor que a minha causaria às pessoas que amo. Talvez seja uma forma de me sentir amado, de enxergar um pouco mais de valor em mim ou até mesmo nas pessoas e situações que me cercam. Bem, não haveria porque pensar nisso agora. A hora de sentar na janela e esperar meu bairro chegar já é sinônimo de vida, de segurança. Se algo tivesse que ocorrer, não seria agora. Não aqui. Ou seria? Na verdade, não sei.

O mistério primeiro corresponde a como isso poderia ocorrer. Talvez afogado na baía? Talvez silente e feliz, dormindo no alto de meus 120 anos. Atropelado na porta de casa? Ou talvez em um dia como este, em um momento sem nada de especial, frívolo e coberto de pensamentos nada doces. Sem pressentimentos ou despedidas. Mortes estúpidas são cruéis por isso. Não há prelúdio, não há intuição e não há despedida. Sim... muitas chances de ser assim. É assim para tantos... Contudo, agora, eu só consigo pensar neste crepúsculo tentador que tenho diante de mim. Na tristeza descaradamente implícita de um sol descendente. Se eu tivesse que morrer logo, seria agora, ao pôr do sol. Retornando à casa.

Num só salto o assalto seria declarado. Ele levantaria ali do último assento, com sua arma na mão, é claro. As pessoas tirariam às pressas de suas bolsas seus documentos e esconderiam rapidamente pequenos objetos de valor. Todos estariam tensos, apesar de conformados. Menos eu. Seria meu destino não saber botar os pés fora do apartamento sem qualquer coisa que toque música. Seria apenas minha a inevitável conseqüência do inocente ato de se prender entre um pequeno aparelho e infinitas janelas de vans, ônibus e barcas. Ninguém repararia em mim até o fatídico momento em que eu, o preço do nervosismo de um assaltante jovem executando sua primeira missão, a primeira vítima perfeita de sua infantil falta de controle, pagasse caro por minha distração: um tiro na cabeça. Sim, talvez fosse isso. Que tragédia.

Este sol que coroa o fim da tarde já teria atravessado o ápice de seu rumo ao oeste, o ponto cardeal da morte. Do fim. Do adormecer. Me pergunto se alguém se daria conta deste detalhe... Do fato de a morte chegar a alguém que está encarando um sol de fim de tarde, saudando o oeste. E, claro! Em uma estrada chamada Linha Vermelha. Seria, no mínimo, poético. Para não dizer perfeito. Me pergunto se alguém teria garra suficiente para ignorar o tumulto e, num glorioso ato de audácia, de leve passar os olhos no ipod, descobrindo por fim que som embalou minha morte.

A notícia se espalharia rapidamente. Pessoas de cujas vidas fui apenas mero figurante se surpreenderiam, chocadas com a morte daquilo que para elas não passava de um vulto de memória. Outras superariam rapidamente porque a morte é parte da vida. Ainda mais nesta cidade. Natural. Algumas, entretanto, esboçariam reações muito específicas as quais não detalharei. São uma ou duas pessoas que conheço tão bem a ponto de até mesmo agora, neste mórbido momento, conseguir prever suas reações face a minha morte. Vejo seus semblantes, ouço suas palavras uma a uma. São cenas certas.

Eu despertaria no outro lado da moeda, cercado pela luz enfraquecida de um sol quase ido. Seguiria sua estrada, olhando ao meu redor, até me dar conta da realidade e sentir o peso que a morte traria à minha vida hoje. Pensaria nos meus queridos pais e irmão. Choraria tanto. A ponto de os fantasmas mais velhos e frios - esses, assim, abandonados - se acomodarem ao meu redor na tentativa de trazer consolo e alento.

Preciso de minha casa.

Eu quero dizer adeus agora mesmo aos mais amados. Abraçar meus pais, meu Deus; E agradecer por absolutamente tudo. Quero ver meus cães. Viajar meio mundo, ou melhor, viajar o mundo inteiro. Quero desatar nós, desencadear verdades e revelar segredos. Botar esta mochila sobre a minha cama e olhar meu teto de estrelas de brinquedo. Tudo isso ao pôr do sol. Mas, não...

As casas passam como cometas pelas janela e o veículo cinza finalmente cruza as portas do bairro. O sol se põe e Vênus ganha força em seu canto, cedendo espaço a um pálido globo prateado. Tenho uma lua cheia no céu, uma mochila vazia nas costas e energia suficiente para muitas horas de música. Não foi desta vez, suponho.

E ensaio sorrisos aqui e ali, esperando o portão chegar.


terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Desajeitado


Nada foxe ao final certo.

- Uxío Novoneyra -


No dia em que a vida me passou para trás, o fracasso nem me olhou nos olhos. Passou por mim sem conversa e seguiu adiante, me deixando ali, em pausa sem tempo definido. É, a intimidade tem dessas coisas...

Quando eu era menor, ele era um companheiro constante. Estava sempre ao meu lado, não me deixava só por um mísero instante. Éramos conhecidos por nossa amizade, que era uma relação bem confusa, porque, veja bem, eu achava que esta existia por eu ser único, completamente fora dos padrões. Então certamente nem me importei quando pude encará-lo e dizer adeus sem sentir saudade. Todo mundo encontra, cedo ou tarde, seu caminho, certo? Encontrando meu caminho, feito de pessoas únicas como eu, eu jamais teria de conviver com aquela presença estranha e incômoda na minha vida. Seria como ganhar uma nova identidade. Ou dar asas à identidade que sempre existiu e fora ofuscada pela sua presença incômoda. Trancado atrás de uma porta imaginária ele permaneceu. Eu segui adiante.

Mas e se esta pessoa que vos escreve, se este ser supostamente doce tivesse apenas se segurado desesperadamente a um sonho? No dia em que a vida botou o pé na minha frente, eu tropecei e vi que a porta esteve o tempo todo entreaberta logo atrás de mim. Vi minha identidade virar nuvem de incenso e meus sonhos, cinzas. Tudo isso em segundos, deixando-me nu e envergonhado, mais uma vez frente a ele.

Eu poderia olhar para baixo e encarar, pelo canto dos olhos, a porta atrás da qual ele estava guardado há muito tempo. Abrir esta porta significaria enfrentá-lo e dizer um desajeitado "olá, eu, por meu próprio mérito (ou falta dele) te trouxe aqui novamente. Sente-se e aproveite a estadia, pois esta parece permanente." Na verdade meu primeiro impulso seria este, mas gelei ao quase toque na maçaneta. O palpável pavor que tal porta instiga em mim foi mais forte. Só de imaginar seu sorriso sarcástico, aquele ar de superioridade tão típico. O olhar dos outros sobre nossa relação. Quis morrer, gritar, bater. Quis morrer de verdade, como nunca quis antes. É tão ruim querer morrer. É tão ruim pensar em morte quando parece haver tanta vida ao seu redor e dentro de você.

Então parei. Sorri. Saí. Nem abaixei a cabeça.

É a arte da falsa doçura. A antiga prática de segurar furações dentro de si. Tolo fui eu de pensar em abrir ou ignorar a porta. Óbvio que esta já estava aberta. Aberta o suficiente para deixá-lo passar com a força de quem foi injustamente preso por anos. Sua fúria era tão real, tão direta. Seca. E seu golpe foi rápido e quase imperceptível em termos de velocidade. Não precisei encará-lo, desta vez. Quer tenha sido por piedade ou ódio, pena ou prazer, ele apenas me atropelou. Categoricamente, por sinal. Conheci suas 10 espadas, estático, num coup de grâce épico. Épico.

Ao mesmo tempo, esta porta aberta tem um quê de saudosismo. Uma energia de embrace who you are. Não sei. Não sei quem eu sou, também. Não faz diferença, neste momento. Eu apenas o reconheço. Muito bem. Está aqui, me rondando, apesar de nossa truncada relação. Eu trago em mim esta qualidade, este dom de emanar conforto para o mais forte através da minha nítida delicadeza... Ou fraqueza.

Eu também poderia, no caso, agradecer aos céus pela oportunidade de ter diante de mim um caminho novo, até certo ponto livre e, mais importante, desconhecido. Poderia ignorar a tal porta e reconstruir tudo e, pela sabe lá deus que vez, fingir que ele, o temido fracasso, não existe.

Mas me diga, valeria a pena? Não seria mais coerente sorrir para ele e aceitar, com serenidade e dignidade, aquele que sempre me conheceu mais que todos?

Afinal, no dia em que a vida me passou para trás - isto é, hoje - a única coisa que consigo reconhecer ao meu redor é ele.

E eu não quero querer morrer.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

ToD


"Como cada pessoa é uma pessoa, cada baralho de tarot carrega suas características, seu tom, sua voz. Como você escuta o que seus decks lhe contam? Que tom dão para as suas leituras? Qual é voz do seu tarot?
Blogagem baseada no texto Vozes dos Decks, na coluna La Pietra Oracolare do Bruxaria.net"


Blogagem Coletiva do Blog Oráculos do Feminino


Aqui estou eu novamente inspirado pelas meninas do Oráculos a pensar sobre o tarot. Desta vez a tarefa é refletir a respeito das vozes dos decks, um assunto tão interessante quanto absolutamente tudo que diz respeito ao tarot, sendo este tópico levemente mais intenso neste momento, por razões pessoais.

Recentemente, devido a fatos explicados no meu último post, alguns novos decks entraram em minha vida, me forçando de certa forma a viver intensamente essa inusitada (e, para mim, nova) experiência de sentir na pele as diferentes vibrações que cada baralho transmite. Pois bem, eu poderia ser um pouco mais ousado e tratar das vozes de cada um de meus decks - não são mais do que 5 - mas me parece mais válido focar em apenas um, não só para evitar um texto repleto de informações talvez desconexas, mas também porque se trata de um deck relativamente novo em minha vida; de modo que escrever sobre sua voz - e aqui eu acabo sendo um pouco egoísta- é um trabalho de enriquecedora aprendizagem para mim mesmo.

Bem, o deck em questão é o Tarot of Dreams, do Ciro Marchetti. Este deck é o segundo de uma "trilogia", a saber, The Gilded Tarot, Tarot of Dreams e The Legacy of The Divine Tarot, todos os três trabalhados dentro da arte digital tão caraterística do Ciro.

Antes de mais nada, este baralho fala comigo através de suas cores. Muito intensas, elas chegam a você sem transparecer sua força de forma óbvia, trazendo a mensagem principal, eu diria, para depois abrir espaço para pequenos detalhes que acrescentam e elaboram a leitura. Essas cores a princípio são quatro (ou cinco se contarmos as bordas dos arcanos maiores) e chamam muito nossa atenção. Leva um tempo, contudo, até nos acostumarmos com o fato de o naipe de copas estar em dourado (correspondendo azul às espadas, verde a ouros e vermelho, obviamente, aos paus).

O segundo elemento que muito me chama a atenção são as expressões faciais de seus personagens. Clicando ali em cima no nome do tarot vocês poderão ver algumas imagens que provam que tais expressões são muito específicas, mas vagas como só os sonhos podem ser. Não penso duas vezes antes de dizer que uma leitura neste deck é como um pulo no mundo onírico, onde tudo é possível. Fechar uma leitura e lembrar de suas cartas pode ser de fato recordar um sonho, seus personagens e os lugares em que tais sonhos se desenvolvem.

Falando em lugares, outro grande trunfo deste baralho se divide em quatro cartas adicionais chamadas palace cards. Estas cartas trazem as imagens de palácios relacionados a cada um dos quatro naipes dos arcanos menores. São os palácios de cada uma das cortes, cartas que conseguem dar uma dimensão a mais às leituras no sentido em que podem representar espaços físicos ou emocionais. Abaixo vocês podem ver o palácio de ouros (morava ali fácil fácil...):


Quanto à "fluidez" deste deck, não tenho muito a dizer. Isto vai de acordo com cada um e sua relação com as imagens e a proposta de cada baralho. Eu diria apenas que, para mim, logo na primeira vez ele funcionou como se eu já o conhecesse há anos. O 'testei' em um jogo para minha mãe e foi tão interessante que a carta dela foi o 9 de ouros, que neste deck traz uma mulher muito parecida com ela fisicamente.

No final do dia este deck é para aqueles que, como eu, gostam de criar mundos na imaginação. O universo contido no ToD é imenso e os símbolos sutis e gritantes se combinam perfeitamente, sejam em cores ou figuras, sejam em símbolos astrológicos ou letras do alfabeto hebraico, discretamente desenhados nos cantos das cartas. Este deck é como um sonho bom. Desses que ao serem interrompidos nos fazem cometer a loucura de enfiar a cabeça no travesseiro na tentativa de voltar "pra lá". A diferença aqui é que, para voltar, basta viramos uma carta.



"Dreams are more precious than gold..."


quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Quem fala comigo?


- The World - Tarot of Dreams (Ciro Marchetti) -


Ao ler a pergunta em questão, quase gelei. Sabia que ali se encontrava um pequeno desafio. De cara, me coloquei a pensar, trazendo do fundo de um baú coisas das quais eu quase (veja bem, quase) havia me esquecido:

Eu tinha 11 anos quando me coloquei humilde e sinceramente, pela primeira vez, diante de um oráculo. Ou, bem, de um quase-oráculo. Era um livrinho espirituoso chamado O Livro da Sorte. Por mais bobo que ele pareça hoje em dia, aos olhos de uma criança ele é muito poderoso. Eu passava horas tentando decifrar suas rimas enquanto os outros meninos jogavam bola e corriam gritando.

Aos 12 eu já tinha meu primeiro 'deckzinho'. Eram cartas tão vagas e estranhas, baseadas no baralho de Lenormand... Eram quase toscas, mas diziam alguma coisa, em algum nível que até hoje não sei direito qual é. Mais à frente ganhei algumas runas. Adorava tanto o fato de serem um alfabeto... Ainda assim, nem as pedras, muito menos o livrinho, eram bem o que eu procurava. Aliás, mal sabia eu que eu mesmo procurava por algo. Estas primeiras coisas não eram 100% parte de mim, mas quebravam um galho, vibravam com alguma coisa aqui dentro.

Bem, esse fascínio que sentimos por estas cartas (ou pedras, ou manchas ou gravetos...) nunca tem uma razão muito clara de ser, certo? Para mim, pelo menos, a razão era tão obscura que passou naturalmente batida pela minha vida inteira. Nunca o questionei, esse fascínio. Nunca o racionalizei. Ele simplesmente estava ali, dentro de mim. E meu dever - meu instinto - era ouvi-lo, respeitá-lo e, porque não, obedecê-lo?

As coisas correram de forma confusa ao longo de um tempo. São tantas as portas que nos atraem, tantas possibilidades existentes em um mundo que não conseguimos ver... As cartas ficaram um pouco de lado. Talvez tenha faltado foco. Talvez eu precisasse de maturidade para ir fundo em algo que viria apenas mais à frente.

Foi em um dia chuvoso que, após uma briga séria com meu pai, eu passei horas e horas fora de casa questionando, pela primeira vez, certas coisas inerentes a mim. E é aí que a questão central deste texto entra. A partir daí um novo rumo surgiu. Não só no dia deste desentendimento, mas naquela época de forma geral, eu pude pela primeira vez ouvir a chuva. Ouvir. De verdade. Aqui dentro. Sim, água é água. Normalmente já exerce poder sobre nós. Água caindo do céu, então... O fato é que eu ouvia a chuva como nunca havia ouvido a mim mesmo em 15 anos (minha idade, na época).

Retornei à casa decidido a tomar atitudes drásticas em relação à quem eu era e seria. Cheguei com sete pedras na mão para ser absolutamente desarmado. Fui recebido pelo meu pai com um pacote cuidadosamente embrulhado em verde. Meu primeiro "main deck" estava ali, junto com um sincero e inesquecível pedido de desculpas.

Católico que é, meu querido pai nunca teve curiosidades a respeito desse mundo que tanto nos atrai. Tudo que ele sabia é que já havia um tempo desde que eu havia visto esse deck em uma loja, e que o mesmo tinha me chamado a atenção. Enfim, para o deck um tanto incomum que é, considerado surrealista (Osho Zen), ele me surpreendeu. E é engraçado, quando estamos abertos a tudo, quando não temos muitas opiniões, as coisas podem fluir muito bem. Na época não me passou pela cabeça julgar, compará-lo a outro baralho ou ponderar e decidir o que fazer. Aceitei meu presente com humildade, transbordando de felicidade, mesmo sabendo que junto a ele vinha uma jornada sem fim. E foi nele que eu aprendi a lidar de forma adulta com as cartas. Principalmente com os arcanos menores, que mesmo sempre gritando aos nossos olhos são tão silenciosos. Esse deck foi uma escola e foi a segunda voz que pude ouvir claramente depois da chuva. Aprendi o que é intuição, pude ver que algo maior nos fala claramente através de pedaços de papel...

Em meio a sonhos, escolhas são feitas e, de uma forma mais do que natural, após uns anos, meu deck ficou guardado em sua caixa, ao lado de minha cama. Sonhos brotando em nossas vidas sempre são coisas boas, mas há de se manter o foco em certos elementos. Sendo mais forte que eu, a vida me afastou um pouco de meu amigo. Alguns anos passaram até que, há alguns meses, meu melhor amigo começou a pedir que eu abrisse um jogo para ele. O incômodo era duplamente intenso: primeiramente porque havia um tempo desde a última vez em que eu o havia feito (ainda não lembro dela, aliás), e além disso havia também a insegurança estranha de lidar com as cartas novamente. É como se eu tivesse me distanciado repentinamente de um grande amigo sem dar satisfações e agora tivesse que enfrentá-lo e assumir minha negligência, encarar o fato de que não sabia o porquê exato de ter me afastado.

Para minha surpresa, tudo fluiu muito bem. Meu amigo não me destratou. Pelo contrário, agiu tão naturalmente, de forma tão leve! Como se nenhuma distância jamais tivesse existido. As coisas seguiram do exato ponto em que foram deixadas. A partir daí, tudo tem sido uma verdadeira festa. É como se um rio tivesse sido liberado, podendo agora fluir. Novos decks surgiram, livros que eu sempre tive e nos quais eu nunca havia reparado pularam do meu armário. Sites, pessoas, métodos. Todas as informações repentinamente à minha disposição. As coisas começaram não só a surgir, mas a falar.

Eu decidi pensar a questão central deste texto a partir daí; e diria que, antes de tudo, quem fala comigo é o amor. Ele guia as nossas vidas. Ele traz coisas e pessoas e lugares. E também pode nos afastar das mesmas, assim, num tirar de cartas. Ainda assim, sem desmerecer o amor (convenhamos, é o amor) não acredito que seja só isso. E eu sei que, com respeito ao Tarot, absolutamente tudo conta na hora de abrir um jogo.

Acho que além do amor ao que se faz, temos as cartas, que estão ali, cantando em nossos ouvidos invisíveis, nos guiando. Acredito que um dos momentos mais mágicos de se abrir um jogo é o momento de selecionar as cartas. O que te guia para tal carta e não outra? Como o Tarot faz isso? Quando me perguntaram quem fala comigo, esse momento de escolher cartas foi uma das primeiras impressões que tive. É ali que algo além de mim e do Tarot age. Há tudo isso que vemos e sabemos, mas há também algo que não enxergamos. Algo que não fala, mas vai direto ao ponto e - pá! nos faz entender a mensagem. Nem sempre sabemos verbalizá-la, mas a compreendemos.

Acontece que o amor a algo que só você conhece vai te levar ao Tarot. E este, por sua vez, fala com aquele que, sabendo sua língua, vai de coração aberto falar com ele. Então o Tarot fala com todos nós, de certa forma. Indo além disso, olhando para dentro, eu vejo que quem fala comigo é o invisível. Tudo aquilo que eu não necessariamente vejo, mas sinto. Sempre foi assim. Será sempre assim.

Por hora paro aqui, confessando sem medo que esta questão ainda não está fechada em minha mente. Ela vai permanecer fervendo, como uma meditação constante. Talvez o processo de descobrir que voz fala aos nossos ouvidos seja para a vida inteira e além. Afinal, não podemos ouvir mais de uma voz?


segunda-feira, 11 de outubro de 2010

XVI


It always starts with some insignificant shade of sentiment. A seed abandoned deep into the earth...

I have felt this before, my friend, this inner cataclysm. It comes from a dark - yet, amazing - place that I don't know of and by the time it sees the light of the day everything around me, this whole vast world... It has already been touched. Changed. Altered by me.

This violent disruption makes my mind and strength sound like the air, for it is simply natural. It is a fundamental part of me that I insist on hiding, like my hair that keeps being cut off by external pressure, not allowed to grow, deprived to flow its' natural course.

Time has come and my windows must be left open. Let the amazing thunderbolt hit this old tower and may we all fall in peace to meet our feared destinies.

Believe.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Ashes

Mais uma esquecível noite de lua cheia para este mundo.

A terceira lua de inverno nesta cidade teoricamente calorosa é tão clara que ilumina tudo com certa naturalidade, fazendo com que o singelo frio pareça parte natural e eterna deste cenário tropical. O inverno tentou, sem sucesso, chegar em silêncio. Tímido como uma criança pálida que, enrolada em panos e cabelos longos, chama a atenção do resto da classe justamente por ser muda e apática. Patética.

Da janela do taxi eu analiso claramente os buracos escuros que a luz da lua teima em trazer à tona. A ilha, geralmente visível ao longe, hoje está imersa em neblina, totalmente invisível. Reflito sobre até que ponto eu gosto dessa não-visão quando, inevitavelmente, sinto o abandono da cidade numa noite de domingo me abraçar. Sinto o frio de alguns que dormem no chão da Rio Branco; ouço os gemidos daqueles que estão solitária e estrategicamente colocados em esquinas do centro da cidade. São muitos aqueles que tiveram suas luzes apagadas por conta da incompreensão alheia. Por um milésimo de segundo me declaro aos malabaristas de fogo, aos boêmios e aos artistas falidos. Aos ditos loucos e bregas e safados e caducos... Pessoas que brincam com o perigo diante de nossos olhos.

Então o fogo surge, por algum milagre, na minha mente. Ela subtamente vaga pelo incêncio que marcou certo morro na noite anterior. Lembro dos beijos que me tocavam enquanto o fogo consumia aquela rocha não tão distante. Lembro de me sufocar em toques, imaginando uma chuva de cinzas cobrindo minhas carícias diante do mar aberto. Desejo ver novamente a rocha em chamas e sinto um desejo incontrolável de tocar as cinzas que preenchiam minha mente. Quero me sentar e vê-las cobrirem a cidade inteira. Mas apenas vejo desaparecer, pela milésima vez e em graciosa decadência, a inocência da qual eu creio jamais ter sido dono. Eu vivo num eterno domingo, eu penso; e lanço um sorriso falso e vazio na tentativa de afastar de mim tal revelação. Tento em vão voltar o foco para a voz do motorista - a esta altura já um sussurro sem sentido - quando um acorde de piano me atinge.

Me pego então enfeitiçado por pequenos rascunhos de estrelas no asfalto. Minúsculo mosaico de vidro e sangue, num prelúdio de curva que precede o viaduto. Pequenos brilhos mesclados com tons vermelhos e branco-transparentes. Restos de sonhos, talvez. Ao fundo, palavras sem sentido para mim estão manchadas em muros cinzas. Sem dúvida um piano cairia bem ali. Sim, é justamente o elemento que falta para aquele quadro. E eu, com meus ouvidos dormentes de madrugada, sou o responsável por trazê-lo aqui.

Me torno cúmplice declarado de quem quer que tenha arranjado aquele cenário tão sutil, quase imperceptível, sabendo que tudo, meu caro, possui uma razão de ser. E o vidro, o sangue, a lua e a tinta foram colocados ali para que eu pintasse de vez o quadro de minha existência.

Eu vivo em um eterno domingo. Um lento domingo coberto de cinzas de uma constante e incontrolável saudade dos tempos em que a vida inteira cabia numa tenra manhã de sábado.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Trovões

A fenda criada pelas cortinas entreabertas lança fachos de luz dentro da escuridão que me envolve. A luz vem em momentos oportunos, marcando um compasso que só eu conheço.
Não estremeço aos trovões, tão mansos...
Adoráveis, como um arrebatador campo de flores elétricas refletindo o sol.
A tormenta reina para além de minha janela e eu vejo teu nome refletir em meus cristais de lua e ametista. Seu nome, meu amor, traduzido na negação de meu feitiço, que a você chegou como pó, reflete e ilumina tudo, quase a ponto de me cegar.
Acaso traçou um destino, quando a porta supostamente se fechou?
Sei que não pode ver que meus cabelos deixaram de ser longos.
Sei que não vê que, sim, reconstruí tudo com minhas mãos; logo após a triste sinfonia daquela noite delicadamente dar espaço ao silêncio e claro, às luzes azuis de meu amanhecer.
Meu mundo está em ordem, sem o vento frio que outrora me acertava.
E minhas estrelas estão todas aqui, penduradas no meu céu de camurça verde, bem onde as recoloquei...
Eu só não contava com os trovões.
Não são meus, mas são a prova de que me apóio naquilo que não é dito. Eles o dizem. O fazem.
Prendo a respiração e me perco em meu morno manto, como um caracol.
Ouço harpas agressivas, maldições oriundas da antiga Gália...
Adormeço sorrindo de medo,
sem forças para cumprir esta promessa já desbotada.
Este feitiço oco e insano que há tanto tempo dediquei a você.
- And it can change in shape or form, but never change in size. Well, the water, it runs deep, my darling, where it don't run wide...

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Cena


Após uma longa noite de monólogos dedicados às frias estrelas, um príncipe de vestes negras desperta em uma praia triste e silente, deitado em fina areia.

Sem traços de lembranças ou sussurros de sua imagem, não sabe quem é, nem de onde vem.
Não possui um nome e muito menos bagagem. Que história lhe deu origem?

Apenas uma folha cravada na areia com um punhal. Letras talhadas ao vento...

Areia branca e céu cinza, entrelaçados,
como onda raivosa e neve em mi menor.

Ele é uma gota de sangue naquela imensidão gelada.

Dedica sua nudez à fria manhã,
se tornando um ponto final
sem botas, capa, chapéu e paletó.

Canta seu triste hino enlouquecido, rasga as palavras de estranha língua
e entra nas águas em busca das lembranças que jamais voltarão.

Some aos poucos, deixando nada para trás.

Que cena estranha, eu penso.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Leonardo, o óbvio

Como se já não bastasse a aliança dourada no dedo e suas roupas sociais de escritório, ele também tinha que segurar um dos principais símbolos da vida adulta: um jornal.

Aposto minha vida na possibilidade de sua leitura ser o caderno de esportes. Bonito? Sim. Continua bonito. Talvez até mais que antes, já que agora - suponho - não há mais o ar infantil e sem educação que era tão típico dos garotos da minha geração, há 12 anos.

Ele, como todos os outros, seguiu os cansados passos de seus pais, que por sua vez seguiram os passos dos seus e assim por diante. Engraçado. Há alguns anos eu sentiria muita inveja dele, tanto por ele estar com a vida "encaminhada" quanto pelo fato de ele ser "normal". Não me leve a mal, não estou criticando deliberadamente a rotina ordinária e sem graça do rapaz. Até mesmo porque confesso que 12 anos atrás eu acreditava que ele se tornaria um marginalzinho, como os piores das turmas se tornaram, embora estivessem em uma instituição respeitável. E vou além e confesso que, ainda hoje, às vezes, quando estou de saco cheio de tudo o que me cerca, eu amo todas essas pessoas e suas vidas comuns. Desejo com força as suas rotinas e toda a glória da previsibilidade das mesmas. Há um certo conforto na normalidade.

Mais do que ninguém, eu sei que não devemos julgar pelas aparências. Acredite, de clichês, eu entendo muito bem. Acontece que eu conheço este rapaz porque venho de um lugar onde todos se conhecem e são iguais e ele, obviamente, não se salvou.

Na infância era um pequeno troglodita, mais um porquinho abusado que batia e brigava de graça, mastigando incessantemente um canudinho e usando uma blusa do vasco extremamente fedida e desagradável por baixo do uniforme. Mas tudo bem, se você acha que prever a vida dele hoje, ao vê-lo como um rapaz heterossexual convicto, católico não praticante, rato de micaretas e torcedor acíduo do vasco que estuda administração e vai trabalhar no centro do Rio de Janeiro lendo o caderno de economia. (sim, perdi a aposta, mas convenhamos, não sei o que é pior, esportes ou economia?) é exigir de mais, tudo bem. Você pode se enganar. Eu não.

Eu sei, sem dúvida alguma, que semana que vem, no carnanval, ele estará em Cabo Frio (uma espécie de extensão ou dimensão paralela à Ilha do Governador) com todos os seus clones que também largaram a rotina daqui para viver a rotina carnavalesca de lá, expelindo cerveja pelos poros. Sou capaz de listar todas as músicas que eles ouvirão ao longo do feriado, bem como as músicas que ouvem e ouvirão ao longo do ano. Consigo listar os shows e programas que frequentariam e consigo prever as palavras que sairão de suas bocas, expressando os pensamentos que consigo adivinhar. Triste. Só me resta esperar que os filhos deles façam a diferença que eles não fizeram.

O normal de mais me soa patético, apesar de eu ter consciência de que eu também, como milhares, estou seguindo um caminho que, apesar de soar anormal ou cool, é desprestigiado e foi e é muito batido. A diferença é que eu, independentemente do caminho que sigo, não sou passível de leitura assim, tão facilmente. Nem mesmo eu sei o que eu penso. E nem mesmo eu tenho ideia de onde estarei daqui a um mês. Posso ser observado, mas não sou absorvido. Eu consigo prevê-los. Todos eles.

Essas pessoas não me veem e não me reconhecem. Só eu tenho este privilégio da memória. São todos iguais, absorvidos em vidas tão "normais" que não são capazes de enxergar, não se dão conta de absolutamente nada. Nem mesmo do rapaz ao lado escrevendo sobre suas vidas desbotadas e sem nexo. Não me surpreendo. Como imaginariam tal absurdo? Não dão asas às possibilidades! Ninguém percebe? É como ter dinheiro suficiente para viajar e se limitar a ir à Disney! Acaso não pensam no tamanho do universo e nas possibilidades por ele oferecidas? Possibilidades são portas, estradas e mares que te levam a terras nunca antes vistas. Possibilidades levam a amores inimagináveis.

Eu tenho um mundo para ver e aprender. Um globo com 4 direções, 5 terras, 7 mares e quase 7 bilhões de pessoas para eu amar, machucar e permitir que me machuquem. Amo pensar nisso. Amo pensar a partir daqui, desta baía, vendo o mundo a partir desta barca. Amo, acima de tudo, ser a variável dessa equação supostamente previsível que é o meu passado.

O óbvio tem um limite.
E a diferença torna o único perfeito e faz do todo algo valioso.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Wings and Horns (Onírico IV)

O que predominava era o amor.

Eu me encontrava num lugar espetacular. Gigantesco, com uma espécie de cúpula de vidro no teto. O chão, as paredes e as pilastras que me cercavam tinham dimensões quase sagradas e eram de diferentes tipos de mármore. Era um lugar semiaberto e circular, de modo que eu conseguiria ver o que existia do lado de fora. Na verdade, eu tenho a impressão de ter visto uma rua como outra qualquer. Eu sei que eu morava ali. Me sentia em casa, em todos os sentidos.

Do andar em que eu estava, eu via o grande teto ornamentado, as pilastras, algumas janelas enormes e um pequeno portão que receberia quem subisse uma longa escadaria que vinha desde lá de baixo, diretamente do portão principal.

Eu não estava sozinho neste palacete, mas não consigo me lembrar exatamente de quem estava comigo. Algumas pessoas eram reais como eu, enquanto outras, apesar de serem reais, eram apenas almas. Consciências que nadavam pelo ar do castelo livremente. Acredito, inclusive, que havia pequenas sacadas e apoios espalhados aleatóriamente pelas paredes, colocados lá especificamente para que os "alados" tivessem onde descansar, caso quisessem olhar o grande teto mais de perto.

Então duas delas vieram. Eram minhas filhas. Ou melhor, eu as amava como se fossem minhas filhas, mas sei que o vínculo familiar delas não era comigo. Eram dois anjos, eu acho. Não eram reais como eu. Eram almas! Vestiam vestidos brancos e, apesar de eu não ver isso ocorrer, eu sei que emanavam luz. Eu as amava muito e ficava feliz em falar com elas. Depois de alguma conversa muito animada, as duas me apontaram uma senhora que estava de azul. Acho que estavam me mostrando que não estavam sozinhas. A senhora vestia roupas normais, aparentemente, e se encontrava numa espécie de varanda de um andar superior ao meu. Eu lembro de acenar à senhora antes de trocar mais algumas palavras com minhas filhas. Só não lembro o que, exatamente.

Depois fui à varanda da frente e vi que dois seres subiam as escadas, entrando no palácio. Eles tinham permissão para isso e vinham para mim. Eram dois unicórnios. Meus unicórnios.

Ao chegarem ao final da escadaria, ambos foram atacados por uma ave muito feroz e assustada. Protetora, talvez. Eu acho que era uma ave oceânica, dessas que ficam nas praias. Ela se irritou muito com a presença dos unicórnios e os atacou, assustando os dois. Lembro de intervir severamente nisto, acalmando a ave, que também era minha. Eu sentia muito amor por estar ali com os três. Era muita alegria, e eu cheguei ao cúmulo de amá-los tanto quanto - na verdade, até mais - que minhas próprias filhas. Os unicórnios então começaram algum tipo de narrativa, como se fossem servos trazendo notícias... Mas, como todos os diálogos ocorridos neste local, eu também não lembro de absolutamente nada do que me foi dito. Acho que nem conversávamos por palavras. Eram sentimentos.

A única coisa da qual me lembro é de que aquele local era meu, e os unicórnios e a ave eram meus filhos também. Na verdade, até mais que os dois anjos com quem eu já havia falado anteriormente.

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As coisas se confundem. Eu estou numa praia e também no centro do Rio de Janeiro. Uma grande onda se encontra a caminho e eu, sozinho, conto apenas com a minha ave, que parece um pouco machucada.

Passo por uma praça muito grande e vejo algumas pessoas à beira da praia, sentadas, conversando. Por alguma razão específica eu decidi deixar minha ave com elas, ato que me trouxe um remorso que, até agora, que já acordei, não foi embora. Vi também uma antiga professora que, ao não me reconhecer, foi bem ríspida e um grupo de pessoas realizando um ritual de origem africana. Uma delas estava vestida de noiva, correndo loucamente pela praça. Tive medo deles.

Depois só lembro de ver muita, mas muita água. Eu não havia me machucado ou morrido na grande onda que chegou, mas lembro de alguém partindo uma porta e me dando parte dela para que eu pudesse nadar.

Meu destino se fechou num gigantesco redemoinho. Quando eu digo gigantesco, eu quero dizer realmente gigantesco. Estou falando de algo de dimensões absurdas. Nele eu vi de tudo, mas os automóveis estavam em maior número. Uma mulher de cabelos amarelos estava ao meu lado. Ela aparentava estar totalmente fora de si. Sorria nomeando cada carro que passava por nós no redemoinho: Marte, Júpiter, Netuno...

Ela ria. E antes de ser esmagada por um carro, disse veementemente que, ela sim, era um planeta em órbita. Um grande planeta em órbita.

Acordei.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

P

Meus olhos transitam sem sucesso pela lista de nomes à procura de uma singela e impactante letra P. Há mais de um ano esta letra fora implantada sem face e sem sentido em minhas expectativas e, Deus, como eu me sinto idiota por prolongar essa história até hoje. Ainda assim, devemos concordar que, apesar de eu ser essa pessoa erm... sei lá, eu tenho lá minhas razões para isto. E depois, procurar alguém que comece com a letra P não é tão idiota, levando em conta o fato de eu ser alguém que procura mil formas de criar outros mundos (vide este blog) e levar fé em fantasias.

Entrei na sala tímido e provavelmente descabelado - sim, eu estou sempre descabelado e não, não é de uma forma muito estilosa. Anyway, estava chovendo - e sentei à frente da mesa, sorrindo em retorno à estranha gentileza que a mulher transmitia. Me sentia desconfortável e sem saber como agir, e descaradamente (e com o pé direito balançando no ar) reparava nos panos, nas caixinhas coloridas e nos móveis aparentemente normais que me cercavam.

Constrangido pelo silêncio, tirei da minha inseparável mochila a nota de 50,00 R$ para ouvir um curto e grosso não. "No final você bota o dinheiro na caixa". Sim. Já cheguei fazendo merda. Maravilha. Era mais fácil eu ter dado uma gargalhada e perguntando "ei, moça, já visitou o GuruWeb?". Tosco.

Ela então me disse que antes de mais nada faria uma espécie de diagnóstico, traçando meu perfil, para depois seguir com as previsões. Hum... Isso seria interessante. Na verdade, eu já tinha isto em vista, e por isso mesmo não transpareci nenhum dos meus gostos relevantes na forma de me vestir. Jeans básico, blusa cinza e sem graça (até velha) e um tênis surrado que usava para caminhar.

- Verde é uma cor que te faz bem. Você precisa de mais verde no seu quarto.

Ok. Me vendi para esta mulher aqui. E acho que, apesar do baque, eu consegui manter a linha nossa-claro-isso-é-totalmente-irrelevante-e-eu-nem-curto-verde-mas-prossiga-vírgula-sim, respirando fundo e sorrindo um sorriso bem amarelo.

- Você não dirige. Velocidade não te faz bem. Você tem medo.

Show. É tão óbvio assim que eu tenho carteira há quatro anos e só peguei no carro duas vezes? Oki doki.

- Tem muita facilidade para amizade com mulheres e animais.

Ou seja, bi-cho-na. (Y) Ainda mantendo o respeito, pensei. She's on fire.

- E você faz... Engenharia?

- Erm. Não. rs

- Não?

- Faço letras.

-Hm... Mas você gosta de criar, é isso que eu vi. Criar. Associei com exatas.

- ^^ (na forma-mais-Rique-de-ser)

Bem, ninguém é perfeito, mas garanto que ela soube recuperar a dignidade.

- E seu cabelo, ele tem um fundamento espiritual desde os seus sete anos de idade. Não corta o seu cabelo. Seu cabelo deve ser longo.

- ... Ok.

- Você tem um cigano, ele se chama xxxx e vem do sul da França. Toca violino.

(Eu disse que ela ia retomar a liderança).

- E você tem os espíritos de um avô e uma avó por parte de mãe que estão sempre ao seu lado te guiando. Você é muito mais apegado à família da sua mãe.

So far, so good. Tirando a gafe da engenharia (que valeu por, sei lá, três gafes?!) ela se saiu bem e continuou nossa consulta com uma série de coisas sem sentido, como uma folha inteira de nomes de pessoas com as quais eu deveria tomar cuidado (ahan, lógico. Vou tomar cuidado com a Cláudia. Ou pelo menos com uma das 1.345.624 Cláudias que eu ainda vou conhecer!) e uns papos loucos sobre uma viagem para a Bahia e outra para fora do Brasil. Na época eu estava quase indo para o Uruguai para apresentar um trabalho da iniciação científica, mas ainda assim... Não levei fé.

Ao me pegar envolvido pela forma quase desgovernada com a qual ela tirava as cartas (aliás, o baralho dela é exatamente igual ao meu) eu precisei manter o foco para discernir o que era diagnóstico e o que era previsão. Tudo vinha de forma muito mesclada, e confesso que os diagnósticos me fascinaram muito mais do que as previsões. Minha mãe foi muito bem definida, dissecada em palavras diante de mim. Meu pai, meu irmão... Tudo, tudo, tudo.

Ouvi coisas surreais, do jeito que eu gosto. Vivi em 15 países. Fui padre, dançarino, camponês, homossexual (é, aparentemente isso foi uma profissão? Ok, não peguemos no pé da moça.), músico... Enfim, consegui deixar essa realidade por uma boa hora e isso já valeu a consulta. De qualquer forma, é sempre bizarro olhar para trás e ver que seu avô faleceu num 1° de março quando esta mulher disse que ele partiria no final de fevereiro/início de março. É algo estranho.

O mais engraçado é que, de alguma forma, você sái dali vivendo em função do que você ouviu (menos em relação ao cabelo, que eu cortei logo no mês seguinte). Não, eu não faço as previsões ocorrerem, se é isso que você vai pensar. Eu não tinha como matar meu avô. E eu não tinha como me envolver por conta própria em um projeto musical que "não é bem cantado... Não é rock". Há coisas fora do nosso controle, sim. Coisas que estão, em algum nível, predestinadas a ocorrer.

Quase tudo o que eu ouvi ocorreu. Meu avô faleceu, meu pai praticamente tomou a frente dos trâmites relacionados à herança, me formei, me juntei a outro projeto musical da forma mais aleatória possível, estou com uma viagem para sair... E mais coisas das quais nem lembro agora. Falando por alto, soa vago: dividido entre duas pessoas no amor, uma renúncia no seu ano e uma escolha também. É vago? É. Mas foi exatamente assim. UMA única renúncia clara e nada planejada. UMA única escolha para a vida inteira, também.

Coisas extremamente pontuais se concretizaram. Menos a letra P, que levaria realmente um tempo para aparecer... A letra P, justo a previsão mais interessante, se não a mais desejada. Uma silhueta tosca. Um borrão no meu futuro. É isso que é a letra P. Não seria para sempre, ela avisou, mas ainda é isso o que eu mais quero. E tenho medo da letra P ser justamente a única falha existente nisso tudo. Muito medo. Mas ao chegar, marcaria para sempre. Eu poderia tentar mudar as coisas e sim, porque não fazer ser para sempre? Não sei. Eu espero. E a partir daqui eu já não sei mais o que vai acontecer.