quarta-feira, 3 de maio de 2017

Leoa Boba

O ano é 1993 ou 1994 e eu tinha entre oito e nove anos
O fato é que mal fiz um amigo e acabei conhecendo a amiga dele
Nothing new under the sun, pero no mucho
Crianças da cidade na garagem de um prédio

Aos dez anos eu ainda sonhava com Peter Pan
E ela dizia que teria dois filhos, Kevin e Camila
E nós corríamos e ríamos e eu me sentia infantil por sempre
Querer beijá-la perto do elevador apesar da minha idade
E ela já sabia falar sobre estalinhos e línguas e eu de Peter Pan

Aos doze anos eu já sabia o que era saudade porque
As lembranças dos dez anos pareciam épicas e ela
Não se dava muito bem com minha nova amiga Mariana
Ainda assim ela estava sempre lá nos pique-niques no alto da rua
E meu irmão gostava da irmã dela

Dos treze em diante eu já tava mais pra rua dela que pra esquina
E a gente jogava vídeo-game e dia sim dia não a mãe dela nos levava
Ao McDonald’s para comer queteirão que era cinco reais
E os filmes em casa e as partidas e o pique-esconde e as locadoras
Era tudo eterno e eu era o anjinho
Mas um dia eu até fui malcriado com a Célia tarde da noite e me senti um herói rebelde

Aos quinze eu era mais amigo da irmã dela que dela
Porque ela já pensava em cada peça de roupa que vestia e sabia sobre motos
E os meninos todos olhavam pra ela e eu só queria ouvir música
E jogar vídeo-game e eu não sabia direito me vestir e eu tinha que tocar violino
E  queria olhar pros meninos que olhavam pra ela e queria falar também mas não deu

Dos quinze aos dezessete eu finalmente tinha amigos na escola
E eu não me sentia tão estranho e ela era a rainha da rua e sei lá, nada a ver
E beijava quem ela bem entendesse e ela comandava o que quando e como
Mas não teve jeito não porque ela sempre assobiava tarde da noite
E eu abria o portão e conversávamos um tempão e nada tinha mudado
Na escadinha da minha varanda e eu ainda me sentia Peter Pan

Dos dezessete pros dezoito eu estava no quarto dela
E falei que tinha saído escondido e beijado um cara
E ela riu e foi foda e ela também tinha os segredos dela
Que passaram a ser segredos nossos e nós conhecemos
Mil pessoas de todos os cantos do nosso pequeno país
Que estão lá naquele momento mágico até hoje mas mal sabem
E mal dão likes no instagram, que jamais será um fotolog

E aos dezoito eu já podia olhar para os meninos
E ela fugia do namorado no porta-malas do nosso amigo
E pouco depois ela já amava uma mulher que desbravou parte
Da vida com ela e daí a menina que sabia escolher
Cada peça de roupa para cada festa acabou virando
Uma mulher-leoa que lutou por amor e saiu fazendo sua vida
Mais ágil que o fogo que botamos em uma casa sem querer
Há muitos anos, nossa como eu corri

Aos vinte e poucos meu amor por ela só tinha aumentado
E ela descobriu uma nova irmã e agiu como a adulta que sempre foi
E eu meio de longe meio de perto admirava e torcia e porra, que orgulho
E se um dia um passo  em falso fosse dado eu estaria aqui, tipo sempre mesmo
E ela sabia  tanto que agora ainda estamos aí mesmo sem passo em falso

E aqui no início dos trinta eu estou imaginando ela
Surfando no sol poente de Bali, porque é pra onde ela vai agora em junho 
E eu sorrio com força porque isso é a cara dela e é isso aí mesmo
E eu estava ao lado dela dia desses
Quando fomos um pouco além e ela tomou uma bala inteira
E ela teve a noite da vida dela e eu tive uma pseudo-bad num terraço com chuva
E depois rimos e rimos e rimos

E  quando dei por mim meus amigos que são forças da natureza
São amigos dela também e a pista de skate é nossa mais que nunca
E é tudo uma coisa só agora mas ela ainda é Leoa que se veste bem
E dia desses ela disse que eu sou meio estranho
E que eu podia olhar mais nos olhos dela e olha só, que boba,

Mal sabe ela que dos meu olhos ela nunca saiu

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