sábado, 30 de junho de 2007

Lembro-me das Árvores


Suavemente meus olhos se abriram. Havia luz. Uma suave luz que envolvia discretos pontos luminosos espalhados por todos os lados. Na gentil presença da manhã eu tinha chegado ao mundo; e nascera de uma singela gota de orvalho, solitária e tímida, levemente acomodada em uma pomposa pétala de rosa. Lembro-me de ouvir, comandada com maestria pelos pequeninos alados, uma sinfonia circular e crescente composta de fina chuva e canto de pássaros. Lembro de pequenos rostos sorridentes me reconhecendo, e lembro de olhar com curiosa felicidade aqueles que saudosamente ali me recebiam. Sem saber onde me encontrava, não temi, e gentilmente suas gravíssimas vozes se fizeram ouvir, vindas do âmago da Grande Matriarca. Lembro-me muito bem do tremor das terras ao som daquelas vozes maternas. Suas palavras não eram ditas – não haveria como - e mesmo assim se faziam presentes e ecoavam como verdadeiros cataclismos nas antigas planícies daquele mundo há muito esquecido. Eu, tão simples e fechado, havia nascido no mais belo bosque construído pelos Deuses.

Lembro-me de ouvir que as chuvas viriam para lavar as almas recém-chegadas, e que os trovões manteriam longe todos os perigos que assolassem nossas terras. Me foi dito também que minha força viria do Sol, ao passo que meus sutis saberes viriam da Lua; e lembro-me muito bem do respeito que sentia naturalmente pelas vozes daqueles que me acolhiam, vozes que permeavam tudo. Vozes que ecoavam por cada canto daquele sagrado bosque. Lembro de saber que ali sim, de fato, eu estava entre os meus.

Havia prenúncio de sonhos naquelas terras verdes. Muitos sonhos. Alguns a serem plantados, outros a serem colhidos. Segundo as vozes, de vez em quando eu me acomodaria nos braços das imponentes raízes para observar os pequeninos em suas distrações, para abençoar inocentes juras de amor às sombras das anciãs ou simplesmente, como a grande maioria costumava fazer, para sentir as energias titânicas que pulsam no longínquo interior da terra. Da mesma forma foi-me dito que nas noites de Lua cheia todos nós festejaríamos em círculos, e que enquanto fôssemos puros o verão perduraria sem fim, como um sonho eterno.

Haveria perigos também, alertaram-me as vozes. Aquelas vastas terras que me esperavam em minha longa jornada me trariam armadilhas, dores e medos. Contudo, lembro-me de ouvir que o amor verdadeiro era imortal como minha essência, e que um sorriso seria sempre a melhor ferramenta nas horas difíceis.

Lembro-me de ser avisado de que caberia a mim despertar a vida e a beleza inerentes a cada folha, a cada flor e a cada fruto, e que meus olhos naturalmente me trairiam caso eu tentasse dissipar a verdade com falsas palavras.

Finalmente, fui lembrado de que os homens há muito haviam se perdido por entre seus próprios poderes, e que eu jamais deveria perder de vista as estrelas, pois elas, como meus irmãos e irmãs, também seriam minhas confidentes ao longo de minha jornada.

Levantei tímido, buscando força para utilizar minhas tão singelas asas, naquele primeiro momento tão fracas, rumo ao raio de Sol que entrara por entre os tetos verdes daquele sagrado palácio de folhas. Ajoelhei-me diante da mais antiga árvore daquele bosque, jurando viver cada segundo em nome do bem daqueles que ali habitavam.

Mais um ciclo se iniciara em minha existência. Eu podia sentir que vivia através daquele poder. O poder daquelas vozes, daqueles trovões. Um poder que vinha das escuras profundezas quentes, subindo por entre as terras, em espiral, trazendo à tona a verdade das verdades. Jamais subestimei a sabedoria daquelas antigas árvores que por eternidades me receberam em diferentes existências. E até hoje cuido de tudo aquilo que vive sobre as gigantescas raízes de minhas bondosas mães.

domingo, 17 de junho de 2007

Fantasma


Sombra dos reflexos, lembrança perdida
Sou brinquedo de lado, linda pedra partida.
Sou o outro caminho, mágico falido
Sou o sonho esquecido e teu ego ferido.
Prazer, sou eu, teu maior inimigo.
Senha decifrada, escada infinita
Sou a asa quebrada, vento forte na aveninda.
Sou o mau exemplo, tua fruta proibida
Sou o fantasma da perda, tua anti-utopia.
Não contente, sou também, tua triste melodia.

Outra Polaridade


Às vezes, quando a lua se esconde
Minha falsa luz se faz vapor
E eu paro sereno diante de minhas águas
E olhando para o nada, vivo meu torpor.
Respiro e espero o leve manto negro de seda descer
E no contato intenso e íntimo com meu lado escuro
Eu sinto a vida pulsar
E minha raíz crescer.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Com Estrelas


Parado nesta praia eu olho as estrelas. Eu quero ferver na certeza aguda de que eu sou o único ser humano no universo inteiro a contemplar esta visão. As estrelas me entendem. Eu as ouço, e elas me confortam, elas me envolvem, elas me sustentam. Ah, e as ondas... Essas ondas que não param nunca. Nossas almas que não param nunca. E todos nós - ondas e almas - vamos indo e vamos vindo com nossos segredos. E este momento é um segredo tão doce... Só eu, as ondas e as estrelas. Tão longe das luzes, dos homens e de seus silêncios ferozes. Será que há mais alguém enxergando essas estrelas de algum lugar? As ondas quebram, o vento bate e com um golpe repentino de ar aquela pontada me invade: não há sereias nesta praia, não há lua, não há amor. Mas então porque eu sei, com cada parte do meu corpo, que você também está a olhar este céu, a contemplar este universo? Já não sou mais eu porque sou água, sou areia, sou vento... Mas ainda assim te sinto aqui dentro! Eu falhei em ser só. Falhei. E hoje esta praia é o fim do mundo e eu te ouço incessantemente... Mas espere, meu amor, veja bem: não te ouço com ouvidos. Eu te ouço com estrelas... E te espero.






Segredos Marinhos


Ao me dar conta do pecado que cometi, saí correndo por meus largos e infinitos corredores. Neles ecoavam melodias tristes, palavras em vão e juras de amor. Percorri todas as alas e corredores daquele castelo, mas dentre tudo que suas poderosas paredes ecoavam, não havia sequer um pecado, um segredo mortal que alguém tivesse deixado escapar. Sem saber o que fazer, cruzei a porta principal, os jardins e finalmente os portões. Pedi aos Deuses um modo de guardar meu segredo em algum lugar que não fosse meu coração e caminhei até a beira do penhasco, lugar alto que me mostrava tudo que a luz e a escuridão podiam alcançar. Pesava em mim a presença de tão mórbido segredo. A quem eu contaria? Quem me perdoaria? Toda aquela imensidão, aquele mar e aquele céu... Nada daquilo me acalmava. E se eu gritasse, talvez? Quem sabe com um grito forte - como aqueles que eu ouvia em batalhas em outras eras, outras vidas - o segredo pudesse se dissipar em meio ao azul? Respirei fundo e me preparava para me livrar de meu fardo com toda fúria quando vi brilhar na areia, lá embaixo na praia, um ponto branco.

Desci pelas pedras e notei que as ondas não me queriam por perto. Elas me acertavam, me atacavam com uma cólera decidida. Conheciam - a seu modo - meu exato objetivo. Não desisti. Segui meu caminho em direção ao ponto que me iluminava, que me atraía e um calafrio agradável tomou conta de mim ao ver que o ponto, pálido, nada mais era do que uma singela e encantadora concha. Por mais simples que fosse, ela sabia que ao longo de toda a costa, apenas ela estava ao alcance de alguém. Sim, ela era a única concha de toda a costa, sozinha e vaidosa, esquecida em meio àquela enorme faixa escura de areia esverdeada. Não havia uma estrela no céu, não havia testemunhas. O brilho da concha era a única luz da praia, a única luz existente em meu reino e eu, pecador tirano, estava a um passo de sua pureza. Teria alguma criatura visto tal pedaço de luz e a ignorado? Que sereia teria deixado ali, em areias tão escuras, tal artefato? Por quê? Perguntas tolas surgiam em minha mente. As ondas transpareciam todo o seu desespero diante da cena. Eu podia ouvir seus gritos, suas súplicas.

Nenhuma onda, nenhum trovão - ou Deus - foi capaz de me impedir. Tomei a delicada concha em minhas mãos, trazendo a mesma à altura de minha boca. Assim, transmiti meu pesado segredo àquele ser puro que, até então, desconhecia a escuridão que o homem desperta em si. Senti a angústia e a tristeza tomarem conta das ondas, do vento e do céu, que recolheu seus trovões. Já estava feito: meu segredo não se encontrava mais em mim e a concha estava cinza e seca. Talvez morta. Voltei a mim ao perceber que um golpe de ar repentino lançou a concha em direção às ondas, levando-a para longe dali com seu novo segredo - ou sina - de volta às suas sereias. Fui covarde, fui tirano, fui egoísta... Fui, da pior maneira, humano. E após três luas, pude avistar três sereias mortas e frias de tristeza estiradas sobre a antiga areia escura. Corpos sutis que, em algum momento, tentaram ouvir um segredo que não lhes pertencia.

O Bosque



- Chegou a hora do despertar, chegou a hora. Disse ela decidida tomando nas mãos a pesada caixa de mármore negro. Saiu pela porta de madeira rumo ao bosque, escuro e pulsando de sede de vida do outro lado do campo. Seguiu sem medo de nada. Tudo ali era parte dela e ela era parte de tudo que ali vivia.

Chegando à clareira, colocou a caixa dentro do círculo, sentou e esperou. Não havia sequer um inseto por perto, o que fazia do silêncio o som mais alto do mundo... Ecoando nas árvores mortas, vibrando nas árvores vivas, o silêncio doía. Então por trás das nuvens roxas ela surgiu crescente, branca e serena, como uma sacerdotisa. Mal olhou para o céu, e como um milagre qualquer, sua primeira lágrima escorreu refletindo as sete cores. Sem pensar duas vezes caminhou gelada até a caixa e retirou com todo cuidado a sua flauta. Mais uma lágrima, mais sete cores de encontro à terra.

Assim, pôs-se a tocar - mesmo sem saber como - toda e qualquer nota. Notas brotavam de sua boca, notas voavam floresta adentro. Aquilo era a sua vida, aquela era a sua arte. Uma arte que trazia vida às flores e árvores. Em cada nota uma semente, em cada semente cores infinitas. Aos poucos a lua brilhava cada vez mais e aos poucos - um a um - os vaga-lumes foram surgindo. Não demorou muito até as borboletas, as fadas e os duendes surgirem para a celebração. Tudo ali fazia parte dela, e tudo ali dialogava intensamente com seu coração. Porém, nada a emocionou tanto quanto aquele unicórnio que, tímido e branco como a lua, a observava de longe com uma rosa na boca.

A melodia já estava no auge, luzes brilhavam por toda a clareira. Ela ouvia tambores. Rodava, rodava e rodava. Ela ouvia cordas. Rodava, rodava e rodava. Queria aquele sentimento para sempre. Rodava, rodava e rodava. E quando não mais podia suportar o peso de seu corpo, sentiu-se levitar em espiral. E naquela espiral permaneceu até o sol bater de leve em seu rosto. Ao despertar, olhou em volta de si mesma e percebeu: não havia mais lua, não havia mais fadas, duendes ou vaga-lumes. Mas não ousou desacreditar... E sorriu ao ver repousando, ao lado da caixa de mármore negro, uma linda rosa vermelha.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Sumiregusa (Violeta Selvagem)


Para além dos confins de meus jardins externos,
se encontra a flor que sobreviveu ao dilúvio dos tempos antigos.
Suas pétalas únicas são luas silenciosas cobrindo céus sem estrelas.
Seu odor, perfume lúdico, viaja por mares profundos, terras distantes e topos malditos.
Sua luz guia tolos por entre as árvores gigantes e imponentes.
Seu caule de seda, letal, nasceu dos fios de cabelo das mais belas fadas;

e seu pólen, etéreo, é o manjar dos Deuses decadentes.

Eis meu maior tesouro.
Eis meu maior tormento.
Eis minha maior blasfêmia.
Eis meu desejo crescente.

Para além dos confins de meus jardins externos,
existe em silêncio a Violeta Selvagem.
Dama lírica das noites quentes, rainha impura entre as sílfides cintilantes e transparentes.
Sua aura emana luz de eclipse com gosto das frutas sagradas e, ao pé do verão,
constelações de pecados surgem ao seu redor, incandescentes.
Sua voz é orvalho em teia de aranha furta-cor
e seus desejos, em lua crescente, se tornam raivosas tormentas de amor.

Para além dos confins de meus jardins externos,
reside aquela de quem sou aprendiz.
Seu doce veneno corre em veias estranhas, escravizando demônios, sacerdotes e melodias sutis.
Sua beleza já espalhou o caos e sua tristeza já plantou a dor.
Suas raízes sustentam palácios, contudo lhe falta a posse do amor.
Lá, bem para além de meus jardins,
se encontra aquela que conquistei inutilmente por eras.

Aquela que, ao vestir seu manto, não quis ouvir à música das esferas.
Lá, bem para além de meus jardins externos,
governa aquela que possui meus dias e minhas noites como bobagens.
Aquela que possui minh'alma presa em suas pétalas roxas de violeta;

Violeta Selvagem...